Por Alberto Tosi Rodrigues (**)
A aplicação de políticas de gestão econômica de tipo neoliberal, nos países de capitalismo avançado, significou e tem significado um modelar desmonte do setor público e um deslocamento dos conflitos econômicos para a esfera do mercado. Desde a ascensão de Margareth Thatcher ao governo inglês, no final dos anos setenta, o pacote neoliberal de "ajuste" tem incluído forte contenção monetária, eliminação de constrangimentos e regulamentações sobre o livre fluxo de capital financeiro, aumento das taxas de juros reais, reformas fiscais de caráter anti-redistributivo e aumento deliberado das taxas de desemprego, entre outras medidas.
Mas o neoliberalismo não se compreende, hoje, como mera política econômica "realista", nascida para "enxugar" o Estado, liberar das amarras burocráticas os agentes do mercado e, assim, superar desequilíbrios tópicos de economias com déficits fiscais ou problemas monetários.
A exposição que se segue - no formato de um rápido painel introdutório - pretende contribuir para uma visualização mais multifacetada do conceito de neoliberalismo, a partir de três aspectos:
Em primeiro lugar, vê-lo como resultado de um movimento histórico-social vindo à luz na década de 1970, em resposta à profunda crise no processo de acumulação capitalista então deflagrada; em segundo lugar, como um corpo articulado de proposições econômicas e sociais, ancorado em aspectos específicos da tradição liberal e traduzido em vulgata para embasar uma retórica político-ideológica; e, finalmente, como prática política adotada, sobretudo desde os oitenta, por organismos internacionais de financiamento, sob hegemonia dos países capitalistas centrais, destinada a estabelecer programas de "ajuste estrutural" também nas economias do Terceiro Mundo, na esteira da crise da dívida externa.
1. Crise Econômica e "Reconstrução" Neoliberal.
Nos anos oitenta disseminou-se pelo planeta um modo de gestão econômica do qual o "thatcherismo" e o "reaganismo" foram os mais conhecidos exemplos, mas que atingiu, indistintamente, países como Austrália, Nova Zelândia ou Grécia, e não se limitou às administrações conservadoras (como a inglesa), mas lançou tentáculos também sobre os países governados por democratas-cristãos (Bélgica e Alemanha), social-democratas (Espanha) ou socialistas (França), e, finalmente, chegou à América Latina e ao Terceiro Mundo como um todo.
De outra parte, não se pode esquecer que desde meados dos anos oitenta, a economia e a política mundiais "globalizadas" assistiram à substituição da Guerra Fria - e de toda a concepção de mundo a ela articulada - por uma nova configuração das relações internacionais. Com a débacle do bloco socialista, o anticomunismo deixou de ser a pedra-de-toque da ideologia burguesa ocidental. Os países do Leste vêm sendo, aos poucos, integrados ao novo modo de gestão, com a privatização dos controles estatais, a substituição da provisão pública pelo mercado e a agregação ao mercado mundial.
Como se sabe, "essa revolução transnacional tomou lugar em oposição ao pano de fundo da crise do capitalismo mundial dos anos 70, que exigiu uma reestruturação de longo alcance das condições econômicas, sociais e políticas da acumulação de capital. O neoliberalismo (...) foi o projeto hegemônico que guiou esta reestruturação e conformou esta trajetória".
Para compreendermos o neoliberalismo como um projeto de reestruturação com pretensões hegemônicas no momento presente do capitalismo, no plano econômico mas também no político-ideológico, a primeira providência é tomá-lo historicamente.
1.1. Perspectiva Histórica.
É comum, nos dias que correm, a concepção da "normalidade" econômica como uma situação ideal de mercado. Soam familiares, para os que vivemos na década de noventa do século XX, os discursos que afirmam que sem a livre concorrência não há aumento de produtividade, não há emprego, não há progresso econômico e, logo, não há prosperidade social.
Esses discursos são tão "normalmente" pronunciados que parecem pressupor que os economistas - esses intelectuais responsáveis pela explicação do funcionamento do mundo econômico aos leigos - construíram uma teoria "que 'prova' que, em condições de concorrência, os consumidores que maximizem a utilidade e que façam trocas, bem como os empresários que maximizem os lucros e que façam trocas, automaticamente agirão e interagirão de maneira a maximizar o bem-estar social".
Atente, no entanto, para o fato de que a citação acima não foi retirada do jornal do dia nem do pronunciamento de nenhuma autoridade da área econômica do governo, e sim de um manual de história do pensamento econômico, e não foi escrita para descrever a economia destes tempos de neoliberalismo, mas para resumir os traços gerais da "visão beatífica" e de "felicidade eterna" dos economistas neoclássicos, que pontificavam no século XIX.
Percebe-se, pela coincidência frisada acima, que a cada momento histórico particular, os agentes sociais do processo de acumulação procuram apresentar este processo ao conjunto da sociedade como "normal" e como voltado para o "interesse geral". Esta suposta normalidade encobre tanto a hegemonia da classe capitalista sobre o conjunto da sociedade quanto a disputa por hegemonia entre as frações do capital total, particularmente o capital financeiro e o capital produtivo - frações que se distinguem entre si por sua função no processo de acumulação.
Conflitando continuamente entre si pela direção do processo de acumulação, os agentes sociais que representam as frações do capital total reagem aos obstáculos ciclicamente antepostos à acumulação, de modo a fazê-la retomar seu curso e buscando estabelecer, assim, uma nova normalidade que passe a representar "o 'interesse geral' objetivo conforme delineado pelos parâmetros correntes do modo de produção prevalente e sua ordem de classes".
No XIX, a justificação ideológica neoclássica do capitalismo laissez-faire centrava-se numa teoria da distribuição que retratava o capitalismo, então em sua fase concorrencial, como um ideal de justiça distributiva. Valiam-se, para tanto, do argumento da "mão invisível", formulado por Adam Smith, que retratava o capitalismo como um sistema ideal em termos de racionalidade e eficiência, e, ao mesmo tempo, exibiam uma fé inabalável na natureza automática e auto-regulável do mercado, a partir da qual demonstravam que as funções do Estado deveriam limitar-se a fazer cumprir os contratos e garantir a propriedade privada.
Ao longo do século passado, o argumento em favor do mercado auto-ajustável visou proteger a economia das injunções por vezes discricionárias da aristocracia - que na Europa a princípio ainda dominava o poder político - nas relações econômicas privadas. Foi assim que, por exemplo, "o internacionalismo liberal da burguesia britânica, combinando laissez-faire, uma abordagem evasiva com relação à classe operária doméstica, e um conceito lockeano de Estado (Estado guarda noturno), obviamente favoreceu o capital britânico, mas, por seu sucesso, obteve a qualidade de uma ordem natural das coisas";
Porém, já no final do século, o desenvolvimento de mercados de capitais em escala mundial e os progressos verificados tanto na esfera produtiva quanto na distribuição provocaram uma forte concentração de poder industrial em empresas gigantescas, trustes e cartéis. A partir daí, a concorrência sem qualquer regulamentação passou a tornar-se muito cara e aleatória para estes grandes conglomerados. Além do mais, a concentração de poder decisório em empresas tão grandes agravou a "anarquia" do mercado, uma vez que reduziu significativamente sua flexibilidade e a capacidade de ajuste que pudesse ter.
Resultado: aumentou a instabilidade geral do capitalismo e as depressões cíclicas, que foram agravando-se e amiudando-se ao longo dos oitocentos, culminaram com a Grande Depressão de 1929.
Passou então a ficar mais claro, mesmo para muitos dos economistas neoclássicos, que o mito do mercado auto-ajustável tinha perdido sua eficácia ideológica. A crise geral de superprodução que se abateu sobre a economia mundial nos anos trinta demonstrava que a anarquia desregrada do mercado podia não só ter custos altíssimos como inclusive colocar em risco a própria sobrevivência do capitalismo. De modo que faziam-se necessárias medidas drásticas de regulamentação dos mercados e de reordenação da produção que só poderiam ser postas em prática pelo Estado, dado o processo autófago em que estavam mergulhados os agentes privados.
É neste contexto que vem à luz a obra do economista John Maynard Keynes, que influenciaria o debate econômico e a aplicação de políticas públicas por várias décadas. Já em 1926, Lord Keynes postulou a ruptura com as bases do capitalismo laissez-faire. "Não é verdade que os indivíduos possuem uma 'liberdade natural' prescritiva em suas atividades econômicas", afirmou. "Não constitui uma dedução correta dos princípios da economia que o auto-interesse esclarecido sempre atua a favor do interesse público. Nem é verdade que o auto-interersse seja geralmente esclarecido". Propôs, em contrapartida, que os economistas se dedicassem a distinguir entre a "agenda" e a "não-agenda" do Estado, isto é, procurassem definir em que medida a intervenção governamental seria proveitosa ao capitalismo, em vez de simplesmente desqualificá-la como desnecessária ou perniciosa.
Nos Estados Unidos, a reação à crise dos anos trinta fez-se através de um conjunto de políticas implementadas pelo presidente Roosevelt, o New Deal. Neste momento, os grandes interesses capitalistas, em confluência com o Estado, puderam fazer-se passar, mais uma vez, por "interesse geral". Em contraste com o que Overbeek e Van der Pijls chamaram de "internacionalismo liberal", emergia um período "monopolista de Estado", que, com sua preferência pela mão "visível" em detrimento da "invisível" (no que concerne às relações de trabalho, mercados ou relações internacionais) refletia principalmente a perspectiva do capital produtivo.
Do ponto de vista das relações entre as classes capitalistas e o Estado, há interpretações diversas do significado do New Deal e da fase que ele inaugura. Mencionarei aqui, a título de ilustração, duas posições significativas: a interpretação do "liberalismo corporativo" e a do "funcionalismo político". Pela primeira, o que teria ocorrido é que, em momentos de crise de acumulação, ao contrário de situações rotineiras, os capitalistas tornam-se capazes de agir "como classe". Ou seja, na virada do século e particularmente durante o New Deal tornou-se claro para a vanguarda do grande empresariado que alguma forma de racionalização da economia era necessária. A partir disso, as políticas adotadas, inclusive o forte protecionismo social e o crescimento do Estado-providência no pós-guerra, teriam sido resultado da ação dos líderes corporativos para normalizar as condições econômicas e sociais, de modo a permitir que as grandes corporações obtivessem lucros sobre bases previsíveis. Por outro lado, a segunda interpretação advoga que o Estado é, já por definição, o fator de coesão de uma formação social e, portanto, inerentemente funcional à reprodução das condições de produção do sistema. Assim, ao contrário de alvo de pressões diretas dos interesses das grandes corporações, o Estado só teria sido capaz de promover a racionalização social e econômica naquele momento graças a sua "autonomia relativa" frente às classes, o que lhe permitiu fugir às lógicas setoriais e particularizadas e projetar as condições ótimas para a continuidade da acumulação a longo prazo.
Seja como for, o certo é que a confluência entre os interesses capitalistas e a ação do Estado deu origem, no segundo pós-guerra, a um período marcado por grande desenvolvimento e, naturalmente, por forte presença Estatal no processo econômico e social. Foi o período de ascensão, nos países capitalistas centrais, do Welfare State keynesiano.
Crise de acumulação de caráter semelhante à verificada nos anos trinta só voltaria a ocorrer na década de 1970. E é nesse momento, em resposta à crise de um modelo baseado na regulamentação estatal, que surgiu o neoliberalismo, como contraponto político e ideológico à social-democracia dominante. É nessa perspectiva, pois, que se pode entender o retorno, no momento presente, a um discurso econômico muito semelhante ao que pronunciavam os apologistas do laissez-faire do século passado.
Vejamos mais de perto, agora, a configuração da Grande Crise da economia mundial dos anos setenta e a ascensão do neoliberalismo como um construto ideológico de pretensão hegemônica.
1.2. Crescimento e Crise.
Os países capitalistas avançados da Europa Ocidental e América do Norte desfrutaram, nos vinte anos entre o fim da II Guerra e os meados da década de sessenta, um período de prosperidade sem precedentes. Além de marcada pelo forte e rápido crescimento da produção industrial e pela difusão social dos benefícios, tal expansão econômica foi capaz de gerar a poupança necessária à reprodução dos altos níveis de investimento então verificados.
Inicialmente favorecido pelos altos investimentos na construção civil (dentro do esforço de reconstrução do pós-guerra) e pela expansão do comércio internacional, o boom do período consolidou-se mediante uma política deliberada de pleno emprego de mão-de-obra e um ritmo acelerado de progresso tecnológico.
Nesse sentido, do ponto de vista do modo de alocação do excedente produtivo, aquele momento caracterizou-se pela generalização do que se convencionou chamar de regime de acumulação intensiva ou fordista. "Combinando os princípios de organização científica do trabalho (o taylorismo) com o consumo em massa, este regime tornou possível uma interação positiva entre as transformações das condições de produção e as transformações das condições de consumo".
De outra parte, estabeleceu-se um conjunto de procedimentos e formas institucionais capazes de assegurar a estabilidade do regime de acumulação vigente, isto é, consolidou-se um novo "modo de regulação", geralmente chamado monopolista.
Acompanhando a clássica análise de Andrew Shonfield, podemos arrolar do seguinte modo estas novas características institucionais: (1) "Registra-se uma influência cada vez maior das autoridades públicas sobre a gestão do sistema econômico", via controle do sistema bancário e ampliação da atividade empresarial pública; (2) "A preocupação com o bem-estar social leva ao uso de fundos públicos numa escala crescente, nomeadamente para auxiliar as pessoas que não recebem proventos"; (3) "No setor privado, a violência do mercado foi dominada. A concorrência, embora continue ativa num certo número de áreas, tende a ser cada vez mais regulamentada e controlada"; (4) "Acabou por ser considerado ponto pacífico, tanto pelos governos como pela pessoa média nos países capitalistas ocidentais, que cada ano deve acarretar um aumento visível na renda real per capta da população" e, finalmente; (5) "A atitude característica na administração econômica em grande escala, tanto no governo como no setor privado" passou a ser a ampliação dos horizontes temporais através de um "planejamento nacional de longo alcance"
Esta regulação monopolista permitiu uma transformação profunda da relação salarial, uma modificação dos mecanismos de formação de preços e um tipo de gestão da moeda e do crédito que autorizou um relaxamento sistemático da contenção monetária.
Nos países capitalistas avançados "a confluência da acumulação intensiva e da regulação monopolista criou as bases de um círculo virtuoso pelo qual os ganhos de produtividade e os aumentos de salários reais (diretos e indiretos) se alimentaram reciprocamente".
Mas a difusão, que se deu nessa época, do padrão de acumulação intensiva da economia norte-americana para a Europa e o Japão, isto é, a disseminação do modelo fordista, manteve os países do Terceiro Mundo fora das principais correntes de troca internacionais. A industrialização dos países periféricos (nos casos em que isto ocorreu) deu-se pelo processo de substituição de importações. Sob este formato, as economias do sul também cresceram - calçadas num forte incremento do assalariamento urbano-industrial - a ponto da aceleração do crescimento ter sido maior nos países do Terceiro que nos do Primeiro Mundo, no período.
A partir do final dos anos sessenta, porém, adveio a crise, nos países centrais, da combinação então vigente entre uma acumulação intensiva e uma regulação monopolista, crise esta acarretada por processos sobre os quais não nos estenderemos aqui. "O círculo virtuoso" (ganhos de produtividade alimentando aumentos reais de salário e vice-versa), então, "cede lugar ao círculo vicioso estagflacionista que se instala de modo duradouro na maior parte dos países desenvolvidos". No Terceiro Mundo, ao contrário, "a industrialização pôde continuar a se desenvolver justamente porque ela não se inseriu nos esquemas de acumulação fordista, cujo desmoronamento esteve na base da crise dos países centrais. No sentido forte, gramsciano do termo, a crise apareceu como própria dos países capitalistas avançados" .
Na América Latina, o aprofundamento do desenvolvimento capitalista foi garantido pela emergência de um novo tipo de Estado, caracterizado por Guillermo O'Donnell como burocrático-autoritário, que implantou-se na região entre meados dos anos sessenta e meados dos setenta com o objetivo de conter a ativação dos setores populares e a instabilidade política daí decorrente e, em seguida, assegurar previsibilidade aos grandes investimentos e possibilitar crescimento econômico mediante, de um lado, a entrada massiva de capital internacional e, de outro, a repressão política.
Nas décadas de 1960 e 70, portanto, configurou-se um quadro de estagflação ao norte (com sensível diminuição do crescimento, desindustrialização relativa e aceleração geral do movimento dos preços - resultado da crise do padrão fordista) e o que Ominami chamou de uma busca inflacionária do crescimento, ao sul (onde a dinâmica inflacionária, mais forte que nos países centrais, alimentou-se do crescimento industrial estimulado por uma forte presença do Estado, e no caso latino-americano, sob regime autoritário).
1.3. Crise e "Reconstrução".
Em suma, conforme a análise de Carlos Ominami, " diferentemente da Grande Depressão dos anos 30, o desencadeamento da crise do final dos anos 60 não colocou em movimento mecanismos de propagação automática para os países em desenvolvimento da recessão nos países desenvolvidos (...). O crescimento do Terceiro Mundo conheceu antes uma aceleração, ao longo do período 1968-80". Porém, a partir dos anos oitenta, o panorama da crise modifica-se radicalmente. "A virada da década coincide com uma brusca deterioração da situação econômica mundial. Após todo um período fora da crise, os países em desenvolvimento mergulham por sua vez em processos recessivos de conseqüências sociais por vezes dramáticas. A recessão tende portanto a se generalizar para o conjunto da economia mundial. À crise já antiga do norte vêm juntar-se as crises do sul. Esta convergência constitui um traço característico do período atual".
E eis aqui o ponto fundamental: nos anos 80, o endurecimento das políticas de austeridade (monetária, fiscal e tributária) colocadas em prática nos países desenvolvidos e, mais particularmente, a nova política adotada pela administração Ronald Reagan nos Estados Unidos, provocaram uma desordem radical na cena internacional. Sua conseqüência para a economia mundial, e em especial para o Terceiro Mundo, foi a criação das condições para o desencadeamento de uma forte recessão em escala internacional, que tomaria a forma de uma crise deflacionária (e não mais inflacionária), com um impacto extremamente negativo sobre o nível da liquidez internacional. Trocando em miúdos, o dinheiro barato obtido pelos países em desenvolvimento nas décadas precedentes (oriundo em boa medida dos "petrodólares" liberados a partir do primeiro choque do petróleo, em 1973), tornou-se, subitamente, caríssimo, dada a explosão das taxas de juros no mercado internacional. Nos oitenta, ainda acompanhando o raciocínio de Ominami, "o monetarismo central vai solapar as bases - certamente frágeis - da economia do endividamento internacional sobre as quais repousa a regulação mundial privada. A emergência de uma dupla contração, comercial e financeira, que se difundira ao conjunto da economia mundial, é a conseqüência direta. (...) Essa regressão no plano das trocas comerciais está estreitamente ligada à deterioração da situação financeira internacional: uma e outra interagem reciprocamente".
É assim que, nos primeiros anos da década de 1980, a deterioração generalizada do comércio exterior atinge em cheio os países em desenvolvimento: Os exportadores de petróleo e os menos avançados foram os mais atingidos, mas a queda das importações foi maior em certos países exportadores de produtos manufaturados (como Brasil, México e Coréia), em razão da acuidade do problema do endividamento. Aliás, a diminuição radical da capacidade de importar das economias do sul constituiu-se na síntese do complexo conjunto de fatores através dos quais se operou a difusão internacional da crise.
No Terceiro Mundo, em suma, "a sucessão de ciclos curtos de altas e baixas (de crescimento econômico) em torno de uma média que permanece elevada é substituída por uma queda livre cujas origens remontam a 1977. Mas é a partir de 1979 que essa desaceleração ganha proporções sensíveis: pela primeira vez depois de vários anos, a taxa global de crescimento do Terceiro Mundo cai abaixo dos 4%. Esta tendência se agravaria nos anos seguintes e chegaria a seu ponto mais baixo em 1982".
Portanto, um novo padrão de regulação estabelece-se, a partir da ofensiva das economias centrais, como resposta à crise que levou o padrão anterior, fordista e monopolista, ao colapso. A crise mundial dos anos setenta "foi uma crise fundamental de 'normalidade' que afetou todos os aspectos da ordem do pós-guerra: relações sociais de produção, a composição do bloco histórico e seu conceito de controle, o papel do Estado, e a ordem internacional". Estes elementos passaram por um processo de reconstrução. Foi necessário um meticuloso trabalho político e ideológico para desarticular formações antigas e reordenar seus elementos em novos termos, visando o restabelecimento da normalidade do processo de acumulação. O novo padrão de gestão econômica e de discurso político-ideológico "que emerge desse esforço construtivo para lidar com a crise orgânica dos anos 70 chamamos neoliberalismo".
2. A Retórica Neoliberal.
Depreende-se do exposto acima que o neoliberalismo significa a formulação de claros interesses de fração em termos de interesses "nacionais" ou "gerais". Nesse sentido, para que seja possível formular "em termos de" interesse geral um interesse particular, é necessária a mediação de um sistema simbólico adequado, que codifique satisfatoriamente uma concepção de mundo, assim como cumpra as funções de meio de comunicação e de instrumento de dominação.
Vejamos, abaixo, primeiramente os principais elementos constitutivos desse quadro discursivo e, em seguida, o contexto de sua gênese.
2.1. Os Elementos do Discurso.
Para lograr a constituição de uma lógica argumentativa eficaz, do ponto de vista da justificação político-ideológica das práticas adotadas, o neoliberalismo lançou mão de um arcabouço caracterizado pela fusão, às vezes difícil e contraditória, de elementos liberais e conservadores. "Em seu aspecto liberal, o neoliberalismo é a política construída a partir do indivíduo, da liberdade de escolha, da sociedade de mercado, do laissez-faire e do Estado mínimo. Seu componente neoconservador se estabelece no governo forte, no autoritarismo social, na sociedade disciplinada, na hierarquia e subordinação, e na nação".
O neoliberalismo, assim, pode ser também concebido como uma retórica específica, um instrumento de ordem gnosiológica. Tratar-se-ia de uma espécie de "gramática" que pretende organizar a representação da sociedade em seu conjunto. Para Bruno Théret, "a coerência lógica do neoliberalismo teórico, necessária a seu poder de persuasão, é assegurada pela enumeração de três princípios que, na versão mais radical da doutrina, são: a liberdade até o limite de seu abuso; a desigualdade até o limite do tolerável; a flexibilidade até os limites da insegurança. É o conjunto articulado desses três elementos que, no plano doutrinário, garante uma plena eficiência econômica do mercado, levando a um crescimento ótimo da produção material e ao progresso social".
O raciocínio, que como já assinalamos retoma alguns dos argumentos básicos da justificação ideológica do capitalismo laissez-faire do XIX denunciados por Keynes como falaciosos, é relativamente simples. O princípio fundador baseia-se no direito natural, e está obviamente calcado na idéia de liberdade. Segue-se que a estrutura social resultante da interação de homens livres por natureza é necessariamente desigual. Daí que a característica dos indivíduos é a flexibilidade. O conjunto resulta na idéia de um mercado ideal, que permite a alocação ótima de recursos escassos. Tal mercado favorece o crescimento econômico e este, por sua vez, autoriza, automaticamente, um progresso social geral. E esse progresso permitiria, a longo prazo, a ampliação da esfera da liberdade por meio de uma transformação cultural da natureza. Esta possibilidade, ao final, levaria a uma redução da propensão da natureza de só prover recursos escassos e, portanto, a uma redução das desigualdades sociais.
Deste ponto de vista, por definição, o Estado é encarado como o principal limite à liberdade individual, porque tende a reduzir as desigualdades e, assim, é fonte de rigidez social, agindo contra a flexibilidade inerente aos indivíduos livres. De modo que o Estado é, inelutavelmente, um perturbador da ordem de mercado e, portanto, um redutor dos estímulos ao trabalho e à poupança e, em conseqüência, tende a frear o crescimento e a constituir-se, por fim, em fator de regressão social.
Uma formulação assim, como argumenta Théret, só pode ser considerada uma retórica reacionária, no sentido específico de que remete a uma filosofia liberal pré-democrática (em sentido moderno), fundada tanto no direito natural quanto no darwinismo social. A retomada desses princípios pelo neoliberalismo constitui-se, assim, numa reação ao igualitarismo democrático e, pode-se acrescentar, ao próprio Estado liberal-democrático moderno e não apenas à social-democracia, seu adversário mais direto.
2.2.A Gênese do Discurso.
A fusão entre elementos liberais e conservadores produziu-se no processo mesmo de constituição do discurso neoliberal, processo este premido, de um lado, pela necessidade de fundamentação teórica na "ciência econômica" e, de outro, pelas demandas de eficácia política. O ponto de partida da constituição do discurso, nesse quadro, deve ser buscado na própria corporação dos economistas.
Na maior parte dos países desenvolvidos, ao contrário do que ocorre no Brasil, os economistas, enquanto tais, têm pouca influência política direta. O que é exportado do campo dos economistas para a esfera das decisões políticas é essencialmente um "clima" e uma retórica (entendida como modo de raciocínio e de argumentação). E isso inclui uma série de "caixas pretas", isto é, fatos dados como certos porque reconhecidos pela opinião comum do campo dos economistas e por isso colocados fora da discussão.
Assim, ainda segundo a argumentação de Théret, o neoliberalismo - enquanto instrumento de conhecimento da realidade econômica e política e enquanto "construção do mundo"- é um produto "da indústria dos economistas", ou seja, "é produzido pelo grupo particular e auto-referido dos economistas" .
Nesse sentido - acompanhando o relato deste autor - a década de 1970, nos Estados Unidos, foi marcada pela competição, no seio do campo dos economistas, entre monetaristas e estruturalistas, nas Universidades e centros de excelência. Este período assistiu ao embate entre jovens monetaristas e antigos intelectuais de corte keynesiano, em busca de postos e cargos mais elevados nas instituições. Estes jovens economistas monetaristas, assim como aqueles ligados à escola da "Public Choice" (como Niskanen, Buchanan ou Tullock) reforçaram o discurso até então relativamente isolado de Hayek e Friedmann, ambos da Universidade de Chicago. Foi com base em Chicago, neste momento, que viabilizou-se o que ficou conhecido como "contra-revolução monetarista", em resposta à "revolução keynesiana" dos anos trinta.
O objetivo prático dos defensores desta perspectiva, naquela conjuntura, era desvalorizar as diversas formas de intervenção pública na gestão econômica. Mas, paralelamente a esse movimento, até então de caráter acadêmico, setores da imprensa, como o Wall Street Journal, por exemplo, passaram a mobilizar o senso comum (tendo como alvo "os contribuintes" ou membros da administração pública) com um discurso certamente menos elaborado, mas calcado numa retórica que procurava evidenciar os efeitos perversos das políticas fiscais implementadas pelo Estado.
Tal discurso chega à Europa no final dos anos 70. É a fase em que a produção neoliberal se internacionaliza, com base na adaptação do discurso às realidades nacionais. "Assim, no continente europeu, no fim dos anos 70, um punhado de artigos com pretensão acadêmica avaliza uma pilha de obras de vulgarização, que suBirdetem a forte pressão, dada a eficácia política do novo discurso, o coração sério da profissão de economista, a priori porém cientificamente hostil às idéias simplistas defendidas".
2.3. Retórica e Eficácia..
De certo modo, essa eficácia política da retórica neoliberal oferece aos economistas a possibilidade de valorização de seu discurso profissional. Assim, num momento de baixa da aceitação pública da pretensão de cientificidade do discurso econômico, o neoliberalismo aparece como um achado, que revigorava o raio de ação dos economistas.
Por outro lado, naturalmente, o sucesso ideológico não se limitou à corporação dos economistas. A nova ética neoliberal provou possuir um forte apelo para diversas camadas. Seu neoconservadorismo tem municiado a burguesia neoliberal com um discurso político calcado no conservadorismo moral, na xenofobia, em lemas como "lei-e-ordem", família, etc. Novos estratos sociais, como as "novas classes médias", foram atraídos pela lógica da mobilidade social ascendente, e antigas camadas, como a própria classe trabalhadora, têm sido atraídas pela ideologia da família e da nação, em especial nos países centrais. No caso da classe trabalhadora, este impacto é particularmente sensível, uma vez que o tratamento reacionário dos problemas sociais pelo neoliberalismo cria dificuldades para que a própria esquerda, em muitos casos também ela convertida à retórica neoliberal, articule um discurso social compatível com o neoliberalismo, conservando assim sua antiga clientela eleitoral.
A mistura precisa de elementos (ideologia do livre mercado e neoconservadorismo) varia de país para país, dependendo da conjuntura política e da situação particular do país na ordem mundial, mas é certo que essas mudanças de orientação ideológica têm causado forte impacto no terreno político. Como apontam Overbeek e Van der Pijls, "a derrota e a desorientação da social-democracia em toda Europa parece terminal. Dahrendorf está certo ao interpretar a vitória neoliberal como o 'fim do século social-democrata'".
Não se trata, porém, de vitória consolidada. Longe disso, a ascensão do neoliberalismo em sua pretensão hegemônica, calcado num discurso estruturado e buscando enraizamento social mais sólido, ainda busca transpor importantes obstáculos. A consolidação do projeto neoliberal - "que envolveu a disciplinarização do trabalho através do estabelecimento de uma nova estrutura de relações de trabalho centro-periferia, subordinando a grade produtiva global em benefício de critérios estabelecidos pelo capital financeiro, e confrontando o Terceiro Mundo e o bloco soviético com uma nova guerra fria - não está realizada até aqui".
Nesse sentido, a disputa por hegemonia no terreno político-econômico dá-se, hoje, essencialmente, em torno das políticas de ajuste em curso.
3. A Prática Neoliberal: as Políticas de Estabilização e Ajuste
Após a crise dos anos setenta, como dissemos, os países centrais adotaram medidas de ajuste econômico cujos reflexos geraram fortes constrangimentos para a economia mundial. A partir do início dos oitenta, o Terceiro Mundo entrou na crise, trazendo consigo o dramático problema das dívidas externas. Faremos nesta seção algumas considerações a respeito do contexto da crise do endividamento, do receituário desenvolvido pelas agências financiadoras internacionais para os ajustes das economias periféricas e do impacto destas políticas sobre os Estados nacionais, enfocando particularmente a América Latina.
3.1. A Crise da Dívida.
A chamada "crise da dívida" desencadeia-se com a forte crise financeira experimentada pelo México em 1982, que levou aquele país à decretação da moratória de sua dívida externa, ocasionando um abrupto corte na entrada de novos capitais externos e desatando uma crise econômica e financeira de grandes proporções entre os países subdesenvolvidos, em especial os da América Latina.. Em razão deste evento, passa a ocorrer uma forte politização da emissão de créditos internacionais.
Dito de outro modo, a partir de então, ante à impossibilidade de financiar suas dívidas, esses países recorreram ao Banco Mundial (Bird) e ao Fundo Monetário Internacional (FMI) e estes organismos, por sua vez, condicionaram o crédito a ajustes estruturais, isto é, "uma série de reformas econômicas, políticas e institucionais, de marcado corte neoliberal, nos países devedores (...)".
Esta renegociação "politizada" das dívidas externas dos países do Terceiro Mundo tem sido o mecanismo por excelência de administração da crise e tem observado, salvo mudanças marginais, uma certa regularidade de procedimentos. Tal regularidade se expressa em três princípios fundamentais de ação dos organismos internacionais: (1) as dívidas devem ser pagas integralmente; (2) os encargos devem recair exclusivamente sobre os devedores; e (3) a negociação deve ser feita caso-a-caso.
Não que com isso os processos de negociação tenham ocorrido sem disputas. Os países devedores têm podido contar com certos recursos que lhes permitem tratamentos diferenciados. Em primeiro lugar, os maiores devedores têm renegociado suas dívidas em melhores condições e foram também os pioneiros em acordos de renegociação envolvendo políticas internas heterodoxas, como a Argentina do Plano Austral. Também o Brasil foi pioneiro, após a crise mexicana de 1982, na suspensão do pagamento da dívida externa, em 1987, seguido por vários outros pequenos devedores. Em segundo lugar, mesmo pequenos devedores puderam obter vantagens adicionais na renegociação dada sua posição estratégica, seja por motivo de alguma inconveniente instabilidade política interna, seja por pertencer à área de influência de alguma potência econômica (já que há zonas de influência de credores sobre devedores: Alemanha com relação à Turquia e Polônia, Estados Unidos com relação ao México, França com relação à África francesa, etc). Em terceiro lugar, a posse de algum recurso natural estratégico - como a posse de petróleo pela Venezuela, por exemplo - pode tornar o devedor menos suscetível às idiossincrasias dos organismos internacionais. Mas a estratégia de cooperação entre os devedores tem se mostrado ineficiente, uma vez que além da oposição dos credores, ela é pouco interessante para os grandes devedores, que preferem a negociação caso-a-caso com vantagens.
Apesar de certas resistências, porém, é óbvia a capacidade dos organismos internacionais de crédito de impor aos devedores as políticas de ajuste solicitadas como condição para os avais.
No debate "politizado" em torno das renegociações, portanto, esses organismos internacionais atuam objetivamente como agências do capital financeiro transnacional, que derivam seu receituário de estabilização e ajuste de uma visão tipicamente neoliberal da crise do mundo subdesenvolvido.
Nesse sentido, o diagnóstico neoliberal da crise na América Latina é de que ela se deve fundamentalmente à recessão internacional dos anos oitenta, sobretudo pela combinação entre uma acentuada queda de preços das exportações e de grandes altas nas taxas de juros reais no mercado internacional. E isso tudo agravado pela forte diminuição dos fluxos de capitais, isto é, de financiamento externo privado, outrora abundante, para esses países. Este diagnóstico se reforça em especial pelo fato de que países de outras regiões do globo, com problemas muito semelhantes, obtiveram recuperação econômica bem maior, e também pela deterioração de longo prazo da situação econômica relativa dos países latino-americanos. Tal deterioração é constatada por uma fuga de capitais no período, em especial devido à perda de confiança nas gestões econômicas vigentes. Completando essa visão, aponta-se invariavelmente o peso excessivo e até mesmo "sufocante" do papel do Estado na economia e, em decorrência imediata, a debilidade do setor privado. "Deste ponto de vista, o desafio econômico que devem enfrentar os países da região é encontrar alguma forma eficaz de retomar o crescimento auto-sustentado que permita garantir o emprego produtivo para uma população em crescimento e restabelecer a confiança dos mercados financeiros externos pela via do serviço 'contínuo e oportuno' da dívida".
3.2. O Receituário Neoliberal.
A partir deste diagnóstico, a política neoliberal de estabilização e ajuste estrutural das economias do Terceiro Mundo, internacionalmente imposta como condição sine qua non para a renegociação das dívidas externas, define três aspectos básicos: (1) as áreas estratégicas de ação; (2) as políticas prioritárias a serem adotadas; e (3) as etapas do processo de ajuste.
(1) Em primeiro lugar, o receituário neoliberal adotado pelos organismos internacionais define quatro áreas estratégicas de ação: a) a orientação da política econômica para o exterior, ou seja, a ênfase nas exportações e substituição de importações, evitando excesso de protecionismo e mantendo o câmbio em níveis competitivos; b) o aumento da poupança e do investimento produtivo sem estímulo exagerado ao consumo, e estímulos à entrada de capital externo; c) a reforma do papel do Estado na economia, especialmente através de uma desregulamentação dos mercados e de uma política sistemática de privatizações; e d) o "apoio" internacional para esta estratégia, em especial dos EUA e países industrializados, apoio este que de resto só se vislumbra na iminência de colapsos, como na recente crise mexicana de 1994.
Na visão do Bird e do FMI, então, aparece como necessidade mais urgente tratar da combinação dos fortes desequilíbrios internos dos países devedores, ou seja, inflação e déficit da balança de pagamentos, que impedem o crescimento de longo prazo. Quanto mais prolongados tenham sido estes desequilíbrios, prevêem, mais "custoso" será o ajuste. A chave do ajuste, para estes organismos, "reside em encontrar a combinação adequada e o manejo equilibrado dos instrumentos de política monetária, fiscal e cambial que, para um nível dado de financiamento externo, logrem cumprir com os objetivos da estabilização, apoiem as transformações estruturais e imponham menos custos em termos de crescimento no curto prazo". Toda a ênfase, em suma, é colocada na questão da resolução do problema do déficit fiscal do Estado.
(2) Define-se, a partir desse enfoque, um conjunto de políticas que requer atenção prioritária: a) aumento da poupança pública via redução de gastos e incremento da receita; b) aumento da poupança privada (que requer instituições financeiras internas fortalecidas e manutenção de uma política econômica estável); c) maior eficiência econômica e aumento dos investimentos privados (o que requer uma desregulamentação da atividade produtiva, em especial eliminando controles de preços e desregulamentando o mercado de trabalho); d) "melhor" destinação do investimento público; e) aumento da oferta de bens de exportação.
(3) Não obstante um amplo consenso em torno deste programa de ajuste, trava-se um debate interno ao campo neoliberal a respeito das questões de implementação desta agenda, em especial, para estabelecer-se a seqüência mais desejável das medidas de política econômica voltadas para a obtenção da estabilização e das voltadas para o ajuste estrutural das economias. Discute-se também a ordem apropriada para eliminar as distorções dos mercados inicialmente regulados e a velocidade com que a abertura comercial deveria se dar (se de uma vez ou num prazo de cinco a dez anos, por exemplo) e, ainda, se deveriam ser eliminados os controles de preços de uma vez ou gradualmente. Neste debate, o Bird aponta três etapas para o processo: a) obter uma estabilidade macroeconômica mínima, reduzindo os níveis de inflação e as taxas de juros reais; b) uma vez isso obtido, a aplicação de profundas reformas estruturais visando implementar competitividade interna e externa dos mercados de bens, de insumos e financeiro, juntamente com uma racionalização do sistema de regulamentação e reformas institucionais que promovam o aumento da poupança pública; e c) a consolidação das reformas, com a recuperação sustentada dos níveis de investimento.
A crise da dívida, porém, apesar da aplicação desse receituário, não tem sido revertida. Muito pelo contrário, o conhecido resultado tem sido o de aumentar os desequilíbrios internos dos países devedores. "A renda per capita na América Latina se manteve, durante toda a década de 1980, muito abaixo dos níveis alcançados no final dos anos setenta e esta tendência continua na maioria dos países, com impactos sociais regressivos e agudos conflitos políticos, de imprevisíveis conseqüências para as democracias recém instauradas. Ante este panorama desolador, a década de 1980 tem sido caracterizada como uma década perdida no desenvolvimento latino-americano".
3.3. Os Ajustes Domésticos.
Do dito acima, depreende-se facilmente que as políticas internacional e doméstica de ajuste estão intimamente ligadas. O receituário neoliberal, porém, é um conjunto de políticas uniforme imposto a realidades nacionais as mais díspares e, por mais que sejam aceitas acriticamente pelos governos, tais políticas encontram necessariamente um conjunto importante de particularidades no processo de implementação.
Longe de mapear a contento a complexa questão dos conflitos políticos internos aos Estados nacionais em torno da implantação dos programas de ajuste estrutural, o que se pode fazer aqui é apenas indicar alguns dos problemas atinentes a esses processos.
Nesse sentido, é preciso atentar para alguns aspectos básicos, como o poder dos diferentes grupos de interesse; a natureza das instituições políticas, inclusive a burocracia; e a influência dos cálculos políticos de curto prazo, inclusive a agenda eleitoral e as transições de regime. É na confluência desse quadro político interno com as pressões dos organismos internacionais de financiamento que se situa o terreno sobre o qual o neoliberalismo busca expandir-se e firmar definitivamente sua hegemonia na presente fase do capitalismo.
Do ponto de vista geral da relação Estado-sociedade, as exigências dos diversos setores organizados são bastante diferenciadas.
Para o empresariado, o essencial nos momentos de ajuste é sempre a exigência de um entorno político o mais confiável e previsível que o governo possa oferecer, com um mínimo de ingerência regulatória abrupta sobre a atividade econômica, facilitando assim o planejamento e a realização de investimentos. Na ausência dessas condições, o empresariado pode oferecer resistências aos programas de estabilização. No caso do Chile, por exemplo, primeiro país latino-americano a implementar um "ajuste" neoliberal, realizado a partir de meados dos anos setenta, a ditadura Pinochet ofereceu condições ideais ao empresariado - especialmente após a superação da crise de 1982 - em termos de previsibilidade política e de não exposição da atividade empresarial privada a discussões públicas com outros setores sociais, dado o fechamento do regime. Já no Brasil, os diversos choques heterodoxos da segunda metade dos anos oitenta e mesmo um programa de perfil mais nitidamente neoliberal como o de Fernando Collor em 1990, acabaram por ser boicotados por um empresariado resistente a ingerências que vinham interromper abruptamente uma lógica de acumulação típica de conjunturas fortemente inflacionárias, montada na rapinagem financeira de curto prazo. Seja como for, é mais comum que o grande empresariado - com maior poder de barganha e menos sensível aos efeitos de políticas recessivas de curto prazo - identifique-se diretamente com os interesses de longo prazo do capital financeiro transnacional, enquanto que o pequeno empresariado esteja mais preocupado com a situação do mercado interno a curto prazo e, portanto, menos satisfeito com a implementação de políticas monetaristas ortodoxas.
Fica claro, nesse ponto, que há uma relação direta entre a existência de regimes autoritários ou democráticos e os programas de estabilização. Com governos "fortes" existem maiores facilidades para os programas de ajuste, especialmente no que tange à imposição dos custos dos programas a determinados setores sociais. De sorte que, conforme já observado, o neoliberalismo encontra terreno fértil no neoconservadorismo político e nos regimes de exceção. No espectro democrático, por outro lado, há maiores facilidades em democracias com padrões estáveis de representação dos grupos de interesse (democracias institucionalizadas) do que em democracias plebiscitárias, porque nas primeiras as elites econômicas têm maior peso na arena política e nas segundas as questões econômicas tendem a ser "politizadas".
Na intersecção entre agenda política e agenda de estabilização, por sua vez, coloca-se uma das questões mais relevantes desse processo. No que diz respeito a transições de regime, nota-se que os novos autoritarismos tendem a políticas de disciplinarização econômica (como ocorreu em todos os países latino-americanos após os golpes militares), uma vez que na raiz mesma dos golpes, como demonstrou Guillermo O'Donnell, encontravam-se crises econômicas de profundidades variadas; enquanto que as novas democracias tendem a planos de estabilização expansionistas (como o Brasil do Plano Cruzado e a Argentina do Plano Austral). Já no que diz respeito a transições eleitorais sob regime democrático, o que geralmente ocorre é a deflagração dos pacotes de ajuste imediatamente após as eleições e a tomada de posse, momento em que os executivos controlam um maior estoque de recursos políticos e de legitimidade; ou, por outra, uma tentativa de converter quedas abruptas de inflação em dividendos eleitorais, como ocorrido no Brasil com o chamado "estelionato eleitoral" do PMDB em 1986, ou com a cronometrada coincidência entre o calendário do Plano Real e as eleições presidenciais de 1994.
Quanto aos trabalhadores, é óbvio que oferecerão maior resistência aos processos de estabilização neoliberal quanto maior seu nível de organização corporativa e política e quanto maiores forem os mencionados "custos sociais" impostos, seja em termos de perdas salariais e desemprego, seja em termos de desmonte do sistema securitário e previdenciário público ou de outras garantias e regulamentações estatais do processo de trabalho.
De outra parte, nos países em que os partidos têm base rural forte (ou, como no Brasil, as bancadas parlamentares dos proprietários de terras perpassam a organização partidária formal, constituindo um grupo de interesse autônomo com representação parlamentar própria) ou, em outro registro, onde os camponeses são suscetíveis de mobilização revolucionária, as elites estatais geralmente são forçadas a observar os interesses dos proprietários de terras nos programas de ajuste.
O "sucesso" dos programas requer, além do mais, a existência de uma burocracia estabilizada e profissionalizada que atenda às necessidades administrativas das políticas de ajuste, levando-se aí em conta também o padrão de recrutamento da burocracia. E, dentro dessa burocracia, deve-se destacar um segmento especial: os tecnocratas. Ponto de intersecção entre o campo intelectual (em especial o dos economistas) e o político-administrativo, a importância da tecnocracia para os programas de ajuste e para a própria expansão ideológica do neoliberalismo está tanto na circulação das trajetórias pessoais de intelectuais a tecnocratas quanto na "circulação de idéias" neoliberais de um campo a outro, circulação cujos contornos obedecem tanto à lógica acadêmica (debate entre keynesianismo e monetarismo pela hegemonia no campo dos economistas) quanto à lógica da competição político-eleitoral, que pode levar tecnocratas de matizes diversos ao aparelho de Estado. O cruzamento entre perfil da tecnocracia e regime político também é uma interface importante. No Chile, os chamados Chicago Boys, jovens economistas formados pela escola de Chicago, substituíram os intelectuais engajados do período de Allende nos postos do aparelho de Estado e puderam implantar, sob a ditadura Pinochet, um shock monetarista já em 1975. Mais recentemente, no Chile como no Brasil, a afirmação da democracia competitiva trouxe consigo a figura do técnico-político, intelectual de formação acadêmica não burocrata que disputa espaço no campo político-eleitoral.
Finalmente, no que diz respeito à relação entre a expansão do neoliberalismo e a disputa político-eleitoral, é possível detectar-se, em determinadas situações, uma certa indiferenciação entre esquerda e direita. Mas essa indistinção, pelo que se pode perceber, não denota unanimidade na gestão estatal ou na competição política, e sim evidencia uma nova fratura no interior das elites políticas, perpassando direita e esquerda. No seio de cada Estado nacional, a arena do conflito - pautado pela pretensão hegemônica do neoliberalismo - tem-se caracterizado pela divisão do sistema político e administrativo entre, de um lado, os agentes voltados para o tratamento das questões macroeconômicas do ponto de vista da gestão financeira em seus constrangimentos e implicações internacionais e, de outro lado, os agentes que permanecem especializados na gestão social e que se vêem cada vez mais restritos ao nível local. "Entre esses dois grupos, o diálogo, que sempre foi difícil, rompeu-se amplamente e assim permanecerá sem dúvida enquanto permanecerem as regras neoliberais de gestão do Estado".
Considerando-se os aspectos expostos acima, entre outros, é que se pode compreender as diferenças no timing da implantação e no conteúdo das agendas de ajuste neoliberal em curso em diferentes países da América Latina.
4. Considerações Finais.
Conforme o exposto acima, a crise de dimensões mundiais por que passou o capitalismo na década de 1970 exigiu uma radical reestruturação nos padrões de acumulação fordista e de regulação monopolista até então em vigor. O novo construto político-ideológico e de gestão econômica que emergiu com este processo de reestruturação foi o neoliberalismo, que, do ponto de vista da disputa entre as frações do capital total, visou e visa reorientar a economia, a política e a sociedade capitalista para uma nova "normalidade", afeita à perspectiva do capital financeiro transnacional. Este construto ideológico materializa-se a partir de um quadro teórico extraído da ciência econômica e de sua vulgarização através de "formadores de opinião", até conectar-se com as orientações de governo e com a prática de gestão administrativa dos quadros das tecnocracias estatais. De outra parte, como a crise dos setenta originou-se nos países de capitalismo avançado (esgotamento do modelo fordista), não disseminou-se de início aos países em desenvolvimento (que cresciam via industrialização por substituição de importações). Mais ou menos na virada da década de oitenta, porém, devido às políticas de ajuste dos países centrais e à conseqüente explosão das taxas de juros no mercado internacional, os países em desenvolvimento começam a sofrer os efeitos da crise mundial, agravada de modo especial pelo endividamento externo. É a partir da necessidade de equacionamento destas dívidas e de correção dos desequilíbrios internos por elas provocados - bem como, por outro lado, a partir da recente absorção dos novos mercados representados pelos antigos países socialistas - que se desencadeia o processo de implantação dos programas neoliberais nos países subdesenvolvidos, processo esse que tende a generalizar mundialmente o neoliberalismo como construto ideológico hegemônico. Em cada país, porém, tal expansão depara-se com o desafio de interagir com diversos fatores de ordem social e política, que determinam diferenças de caráter, de grau, e de velocidade na absorção do novo modelo, bem como conformam os contornos de novas arenas de disputa.
Bruno Théret observou, em seu trabalho citado, que há um certo consenso, na literatura disponível, sobre o fato de que, diferentemente do que foi o keynesianismo, o neoliberalismo não logrou ainda a adesão em massa a seus valores, sobretudo em vista dos processos de desmantelamento do Estado-providência, permanecendo ainda disputado, no plano político, no seio do eleitorado. Argumentou ainda que, como o neoliberalismo postula a separação entre o econômico e o político e, mais além, dentro do próprio econômico a separação entre o financeiro e o produtivo, isto implica, no interior do Estado, numa separação, como já se assinalou acima, entre os gestores da área macroeconômica e os da área social. "Uns raciocinam em termos de eficiência econômica, de moeda forte e de competitividade, de excelência individual e de trunfos mundiais; os outros põem o acento nos riscos de dualização da sociedade, na importância da solidariedade e da inserção do indivíduo na comunidade, na necessária revitalização do tecido local. Os primeiros podem ser de esquerda ou de direita, os últimos também. E se a cor política importa pouco nesse domínio, em compensação os primeiros dominam claramente os últimos".
O certo é que a disputa pela consolidação da hegemonia neoliberal situa-se, hoje, tanto no plano nacional quanto no internacional. No front internacional, os organismos multilaterais de financiamento interpelam os países do Terceiro Mundo, ou os egressos do socialismo, a partir de um receituário voltado para a reincorporação, sob novos moldes, desses países ao mercado mundial. No front nacional travam-se, no desenrolar dos programas de estabilização e ajuste, os conflitos entre, de um lado, os agentes sociais articulados à lógica e aos interesses do capital financeiro transnacional (como o grande empresariado e a tecnocracia neoliberal) e, de outro, os agentes vinculados à gestão das políticas sociais ou nela interessados (como setores organizados dos trabalhadores e eventualmente pequenos empresários).
Na fase econômica presente, o neoliberalismo, enquanto construto ideológico, busca firmar-se como referência política hegemônica.
Na vivência cotidiana dos anos noventa, em cada página de jornal, em cada discurso presidencial, em cada greve, em cada estatística sobre indicadores sociais, o neoliberalismo aparece como divisor de águas, como parâmetro central do conflito político contemporâneo.
Campinas, maio-junho de 1995.
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