terça-feira, 6 de setembro de 2011

Um grito de revolta - Êra Johnny!




















Esse é um relato pessoal de quem acompanhou,mesmo que por pouco tempo,a luta de um dos poucos que eu tenho orgulho de ter conhecido e que eu posso dizer com todas as letras:ele era P U N K !
Quando conheci o Johnny,eu estava acabando de chegar na cena punk paulista.Foi em um protesto que organizei,contra o voto obrigatório em 2008.No local combinado,tinha apenas 6 pessoas,e entre essas seis lá estava ele,com seu visual e força de vontade inconfundíveis.De cara nos tornamos amigos,era impossível ser diferente;e a partir desse dia,foram muitos protestos e shows na companhia dessa figura ímpar e cheio de vida.
Por conta de sua atitude firme e seu ideal anarquista,Johnny estava sempre nas páginas dos jornais,sendo difamado e marginalizado.Ele não tinha medo de enfrentar ninguém,nem mesmo o estado (esse ele fazia questão).Foi preso no protesto contra o G8;por agredir um neo-nazista(o Chukie,da gangue neo-nazista Impacto Hooligans),que recentemente foi preso por tentar matar moradores de rua próximo à Av:Paulista e por atirar ovos em políticos.Mas em nenhuma dessas situações foram mencionados os motivos que o levaram a praticar tais "delitos".
Nesse final de semana (03/09/2011),combinamos de ir a um show,no Carioca Club,em Pinheiros e como sabíamos que teriam no local esses grupos intolerântes,então achamos mais prudente irmos em grupo,para evitar maiores problemas.Mas não adiantou.Ao chegarmos na rua dessa casa de shows,fomos recebidos à tiros de rojão e bombas caseiras e no meio desse caos,esfaquearam Johnny,que não resistiu aos ferimentos e faleceu no hospital.
A imprensa,antes de se informar do ocorrido,já foi logo tratando de relacionar esse militante antifascista à grupos de "pumk's intolerântes",e mais uma vez marginalizando,querendo assim justificar sua morte,e abafando mais uma vez os verdadeiros responsáveis pelas covardias e barbáries que vem aumentando nas ruas de São Paulo.
Já temos nessa cidade,delegacias especializadas em crimes de ódio,temos grupos organizados que denunciam,veementemente,a intolerancia e seus agentes.O que falta para haver punição desses assassinos?Será que teremos que assistir a morte de mais Johnnys para que se tome uma atitude e acabem de vez com essa impunidade descarada?
Uma coisa eu tenho clara,não me calarei e não desistirei jamais dos ideais que,junto com esse amigo,lutava e continuarei lutando.Até a vitória final...
Êra Johnny - Antifa Sempre!!!

terça-feira, 26 de julho de 2011

Carta de Marx,sobre Proudhon

Londres, 24 de Janeiro de 1865

Caro Senhor!

Recebi ontem uma carta em que me pede um ajuizamento pormenorizado acerca de Proudhon. A falta de tempo não me permite satisfazer o seu desejo. Além disso, não tenho nenhum dos escritos dele aqui à mão. Para, contudo, lhe mostrar a minha boa vontade, traço rapidamente um curto esboço. Poderá, então, completar, adicionar, omitir, em suma, fazer dele o que melhor lhe parecer (1*).

Já não me lembro dos primeiros ensaios de Proudhon. O seu trabalho escolar sobre a «Langue universelle»[N16] mostra com que displicência ele se atirava a problemas para a solução dos quais lhe faltavam mesmo os primeiros conhecimentos preliminares.

A sua primeira obra Qu'est-ce que la propriété?(2*) é incondicionalmente a sua melhor obra. Faz época, se não por um conteúdo novo, pelo menos, pela maneira nova e atrevida de dizer o velho. Nas obras — que ele conhecia — dos socialistas e comunistas franceses, a «propriété»(3*), naturalmente, tinha sido não só criticada de diversos modos, como também utopicamente «suprimida» [aufge-hoben]. Naquele escrito, Proudhon está para Saint-Simon e Fourier aproximadamente como Feuerbach está para Hegel. Comparado com Hegel, Feuerbach é bem pobre. Contudo, depois de Hegel, ele fez época porque pôs o acento em certos pontos, desagradáveis para a consciência cristã e importantes para o progresso da crítica, que Hegel tinha deixado num místico clair-obscur(4*).

Naquele escrito de Proudhon domina ainda, se assim me posso expressar, uma forte musculatura do estilo. E eu considero o estilo dele como o seu principal mérito. Vê-se que, mesmo ali onde apenas algo de velho é reproduzido, Proudhon descobre por si; que aquilo que ele diz era novo para ele próprio e valia como novo. Desafio provocador que atinge o «sacrossanto» económico, paradoxos plenos de espírito com os quais o senso comum burguês é ridicularizado, juízo dilacerante, amarga ironia, um profundo e verdadeiro sentimento de revolta transparecendo aqui e além acerca da infâmia do existente, sinceridade revolucionária — por tudo isto Qu'est-ce que la propriété? electrizou e produziu um grande choque desde a sua primeira publicação. Numa história rigorosamente científica da Economia Política este escrito mal seria digno de menção. Mas semelhantes escritos de sensação tanto desempenham o seu papel nas ciências como na literatura romanesca. Tome-se, por exemplo, o escrito de Malthus sobre «Population»(5*). Na sua primeira edição não é nada mais do que um «sensational pamphlet»(6*) e, ainda por cima, um plagiai(7*) do princípio ao fim. E, todavia, que choque não produziu este pasquim sobre o género humano!

Se tivesse o escrito de Proudhon diante de mim, seria fácil documentar com alguns exemplos a sua primeira maneira. Nos parágrafos que ele próprio considerava como os mais importantes, imita o tratamento por Kant das antinomias — era este o único filósofo alemão que nessa altura ele conhecia, por traduções — e deixa a forte impressão de que, para ele, tal como para Kant, a solução das antinomias vale como algo que cai «para além» do entendimento humano, isto é, sobre a qual o seu próprio entendimento permanece nas trevas.

Apesar de todas estas aparentes arremetidas titânicas encontra-se já, porém, em Qu'est-ce que la propriété? a contradição segundo a qual Proudhon, por um lado, critica a sociedade do ponto de vista e com os olhos de um camponês das parcelas francês (mais tarde de um petit bourgeois(8*) e, por outro lado, aplica o critério que lhe foi transmitido pelos socialistas.

A insuficiência do escrito estava já insinuada no seu título. A questão estava posta de um modo tão falso que não podia ser correctamente respondida. As «relações de propriedade» antigas tinham decaído nas feudais, as feudais nas «burguesas». A própria história tinha, deste modo, exercido a sua crítica sobre as relações de propriedade passadas. Aquilo de que propriamente se tratava para Proudhon era da propriedade moderna-burguesa existente. À questão sobre o que esta fosse, só se podia responder por uma análise crítica da «Economia Política» que compreendesse o todo [das Ganze] daquelas relações de propriedade, não na sua expressão jurídica como relações de vontade, mas na sua figura real, isto é, como relações de produção. Porém, uma vez que Proudhon entrelaçava a totalidade [die Gesamtheit] destas relações económicas na representação jurídica universal «a propriedade», «la propriété», também não podia ir além da resposta que Brissot com as mesmas palavras, num escrito semelhante, já antes de 1789 tinha dado[N17]: «La propriété c'est le vol.»(9*)

No melhor dos casos, isto só conduz a que as representações burguesas-jurídicas de «roubo» também se aplicam ao próprio ganho «honesto» do burguês. Por outro lado, como o «roubo», enquanto violação violenta da propriedade, pressupõe a propriedade, Proudhon embrulha-se em toda a espécie de invenções obscuras para ele próprio, acerca da verdadeira propriedade burguesa.

Durante a minha estada em Paris, em 1844, travei relações pessoais com Proudhon. Menciono isso aqui porque, até certo ponto, sou culpado da sua «Sophistication»(10*), como os ingleses chamam à falsificação de um artigo de comércio. Durante longos debates, frequentemente pela noite dentro, infectei-o, para grande mal dele, com hegelianismo, que ele, contudo, pelo seu desconhecimento da língua alemã não podia estudar convenientemente. Aquilo que eu comecei, prosseguiu depois da minha expulsão de Paris o senhor Karl Grün. Este, como professor de filosofia alemã, tinha ainda sobre mim a vantagem de ele próprio não entender nada do [assunto].

Pouco antes da publicação da sua segunda obra significativa, Philosophie de la misère, etc.(11*), Proudhon anunciou-ma numa carta muito pormenorizada de que, entre outras coisas, se escapam estas palavras: «fattends votre férule critique.»(12*) Entretanto, esta em breve caiu sobre ele (no meu escrito Misère de la philosophie, etc.(13*), Paris, 1847), de uma maneira que pôs para sempre fim à nossa amizade.

Do que aqui foi dito vê V. que a Philosophie de la misère ou Système des contradictions économiques de Proudhon continha propriamente pela primeira vez a resposta à pergunta: Qu'est-ce que la propriété? De facto, ele só tinha começado os seus estudos económicos depois da publicação deste escrito; tinha descoberto que a pergunta por ele posta não podia ser respondida com uma invectiva, mas apenas pela análise da «Economia Política» moderna. Procurou, ao mesmo tempo, expor dialecticamente o sistema das categorias económicas. A «contradição» de Hegel devia tomar o lugar das insolúveis «antinomias» de Kant, como meio de desenvolvimento. Para ajuizamento da sua volumosa obra em dois tomos tenho de o remeter para a minha réplica. Mostrei aí, entre outras coisas, quão pouco ele penetrou no segredo da dialéctica científica; como, por outro lado, ele partilha as ilusões da filosofia especulativa, na medida em que, em vez de conceber as categorias económicas como expressões teóricas de relações de produção históricas, correspondentes a um determinado grau de desenvolvimento da produção material, as fantasia em ideias preexistentes, eternas, e como, por este desvio, ele chega de novo ao ponto de vista da economia burguesa(14*).

Mostro ainda mais como é completamente defeituoso e em parte mesmo de aprendiz o seu conhecimento da «Economia Política», cuja crítica empreendeu, e como, juntamente com os utopistas, persegue uma chamada «ciência», em que a priori deverá ser congeminada uma fórmula para a «solução da questão social», em vez de criar a ciência a partir do conhecimento crítico do movimento histórico, de um movimento que produz ele próprio as condições materiais da emancipação. Designadamente, porém, mostra-se como Proudhon, quanto à base fundamental do todo, ao valor de troca, fica na obscuridade, no falso e a meio, uma vez que toma inadvertidamente a interpretação utopista da teoria do valor de Ricardo por base fundamental de uma nova ciência. Ajuízo do seu ponto de vista geral, em suma, o seguinte:

«Cada relação económica tem um lado bom e um lado mau; é o único ponto em que o senhor Proudhon não se desmente a si próprio. O lado bom, vê-o posto em evidência pelos economistas, o mau [vê-o] denunciado pelos socialistas. Toma dos economistas a necessidade de relações eternas; toma dos socialistas a ilusão de na miséria só ver a miséria (em vez de ver nela o lado revolucionário, destruidor, que derrubará a velha sociedade)(15*). Está de acordo com ambos quando procura apoiar-se na autoridade da ciência. A ciência reduz-se, para ele, ao círculo anão de uma fórmula científica; é o homem à caça de fórmulas. Em conformidade, o senhor Proudhon gaba-se de ter dado uma crítica tanto da Economia política como do Comunismo — fica profundamente abaixo de ambos. Abaixo dos economistas, porque, como filósofo que tem à mão uma fórmula mágica, crê poder dispensar-se de entrar nos pormenores puramente económicos; abaixo dos socialistas, porque não possui nem coragem suficiente nem penetração suficiente para se elevar, nem que fosse apenas especulativamente, acima do horizonte burguês... Quer planar como homem de ciência acima de burgueses e proletários; é apenas o pequeno-burguês constantemente atirado de um lado para o outro entre o capital e o trabalho, entre a Economia política e o Comunismo.»(16*)

Por muito duro que o presente juízo soe, tenho ainda hoje que subscrever cada uma das suas palavras. Simultaneamente, considere-se, porém, que, ao tempo em que eu declarava o livro de Proudhon o código do socialismo do petit bourgeois e o demonstrava teoricamente, Proudhon era ainda anatematizado como ultra e arqui-revolucionário, simultaneamente, pelos economistas políticos e pelos socialistas. Por isso, mais tarde, eu também nunca fiz coro com a gritaria sobre a sua «traição» à revolução. Não foi culpa dele se, originariamente mal compreendido tanto por outros como por si próprio, ele não correspondeu a esperanças injustificadas.

Em Philosophie de la misère, por contraste com Qu'est-ce que la propriété?, ressaltam muito desfavoravelmente todos os defeitos da maneira de expor de Proudhon. O estilo é frequentemente aquilo a que os franceses chamam ampoulé(17*). Um charabia especulativo pomposo, pretendendo-se alemão-filosófico, entra em regra ali onde a perspicácia gaulesa lhe falta. Ressoa continuamente nos ouvidos de cada um um tom charlatanesco, de auto-elogio aldrabão, um tom fanfarrão, nomeadamente, o matraquear sempre tão desagradável da «ciência» e de uma falsa pompa com a «ciência». Em vez do real calor que percorre o primeiro escrito, aqui atinge-se sistematicamente em certas passagens um ardor fugaz à força de declamação. Acresce o fazer de sábio repugnantemente desajeitado do autodidacta, cujo natural orgulho de pensador autónomo já está quebrado e que agora, como novo-rico da ciência, imagina ter de se pavonear com o que não é e o que não tem. Depois, [há] a mentalidade do pequeno-burguês que ataca um homem como Cabet, respeitável pela sua posição prática para com o proletariado francês, de um modo indecentemente brutal — [mas], não agudo, nem profundo, nem mesmo correcto —, enquanto, pelo contrário e por exemplo, trata bem um Dunoyer (que, bem entendido, é um «Conselheiro do Estado»), apesar de todo o significado desse Dunoyer ter consistido na seriedade cómica com que ele ao longo de três grossos e insuportáveis volumes[N18] pregou um rigorismo que Helvétius caracterizou assim: «On veut que les malheureux soient parfaits.» (Querem que os desgraçados sejam perfeitos.)

A Revolução de Fevereiro[N19] veio, de facto, muito pouco a propósito para Proudhon porque ele, precisamente algumas semanas antes tinha demonstrado irrefutavelmente que «a era das revoluções» tinha para sempre passado. A sua atitude na Assembleia Nacional, por muito pouca penetração na situação existente que demonstrasse[N20], merece todo o elogio. Depois da Insurreição de Junho[N21], foi um acto de grande coragem. Teve, além disso, a feliz consequência de que o senhor Thiers, no seu discurso de resposta às propostas de Proudhon[N22] que foi depois publicado como escrito separado, demonstrou a toda a Europa sobre que pedestal de criancinha da catequese este pilar espiritual da burguesia francesa se erguia. Contraposto ao senhor Thiers, Proudhon atingia de facto [as proporções] de um colosso antediluviano.

A descoberta de Proudhon do «crédit gratuit»(18*) e do «banco do povo» (banque du peuple) nele baseado foram os seus últimos «feitos» económicos. No meu escrito Para a Crítica da Economia Política, fascículo 1, Berlin 1859 (pp. 59-64) encontra-se a demonstração de que a base teórica da sua perspectiva provém de um desconhecimento dos primeiros elementos da «Economia política» burguesa, designadamente, da relação das mercadorias com o dinheiro enquanto a superstrutura [Überbau] prática era uma mera reprodução de planos muito mais antigos e de longe mais bem trabalhados. De que o sistema de crédito, tal como, por exemplo, em Inglaterra, no princípio do século XVIII e mais tarde de novo no século XIX, serviu para transferir a fortuna de uma classe para outra, possa, em determinadas circunstâncias económicas e políticas, servir para acelerar a emancipação da classe operária, não resta a mínima dúvida, é evidente. Porém, considerar o capital produtor de juros como a forma principal do capital, querer fazer de uma aplicação particular do sistema de crédito, da pretensa abolição do juro, a base da reconfiguração da sociedade — é uma fantasia completamente pequeno-burguesa [spiessbürgerliche]. Daí que, de facto, se encontre esta fantasia, também mais esmiuçada, já nos porta-vozes económicos da pequena burguesia inglesa do século XVII. A polémica de Proudhon com Bastiat (1850), a propósito do capital produtor de juros[N23], fica profundamente abaixo da Philosophie de la misère. Consegue fazer-se bater mesmo por Bastiat e desata numa gritaria burlesca quando o seu adversário exerce violência sobre ele.

Há poucos anos, Proudhon escreveu para um concurso — creio que patrocinado pelo governo de Lausanne — um escrito sobre os «Impostos»(19*). Também aqui se extinguiu o último vestígio de genialidade. Não ficou senão o petit bourgeois tout pur (20*).

No que toca aos escritos políticos e filosóficos de Proudhon, manifesta-se em todos eles, como nos trabalhos económicos, o mesmo carácter duplo e pleno de contradição. Por isso têm apenas um valor local francês. Os seus ataques contra a religião, a Igreja, etc, possuíam, contudo, um grande mérito local num tempo em que os socialistas franceses consideravam conveniente ser superior, pela religiosidade, ao voltairianismo burguês do século XVIII e ao ateísmo alemão do século XIX. Se Pedro, o Grande, abateu a barbárie russa com a barbárie, Proudhon fez o possível por derrubar o sistema francês da frase com a frase.

Não apenas como escritos maus, mas como baixezas — ainda que baixezas correspondentes ao ponto de vista pequeno-burguês — devem ser designados o seu escrito sobre o «Coup d'état»(21*), em que coqueteia com L. Bonaparte, em que de facto se esforça por o tornar aceitável aos operários franceses, e o seu último escrito contra a Polónia[N24] onde, em honra do tsar, exerce um cinismo de cretino.

Comparou-se frequentemente Proudhon com Rousseau. Nada pode ser mais falso. Tem antes semelhanças com Nic[olas] Linguet, cuja Théorie des lois civiles(22*) é, de resto, um livro muito genial.

Proudhon pendia por natureza para a dialéctica. Mas, uma vez que ele nunca compreendeu a dialéctica realmente científica, apenas a reduziu a sofística. De facto, isso coincidia com o seu ponto de vista pequeno-burguês. O pequeno-burguês é tal como o historiador Raumer composto de «por um lado...» e de «por outro lado...» É assim nos seus interesses económicos e, portanto, [também] na sua política, nas suas visões religiosas, científicas e artísticas. E assim na sua moral, é assim in everything(23*). Ele é a contradição viva. Se, além disso, como Proudhon, for um homem rico de espírito, em breve aprenderá a jogar com as suas próprias contradições e a elaborá-las, segundo as circunstâncias, em paradoxos vistosos, ruidosos, umas vezes escandalosos, outras vezes brilhantes. Charlatanismo científico e acomodação política são inseparáveis de um tal ponto de vista. Resta apenas um motivo impulsionador, a vaidade do sujeito, e trata-se, como com todos os vaidosos, apenas do sucesso do momento, da sensação do dia. Assim se extingue necessariamente o simples tacto moral que, por exemplo, sempre manteve afastado um Rousseau mesmo de qualquer compromisso aparente com os poderes existentes.

Talvez que a posteridade caracterize a fase mais recente dos assuntos franceses dizendo que Louis Bonaparte foi o seu Napoleão e Proudhon o seu Rousseau—Voltaire.

V. próprio tem agora de assumir a responsabilidade, uma vez que V., tão perto da morte do homem, me encarregou do papel de juiz dos mortos.

Devotadamente seu

Karl Marx

segunda-feira, 25 de julho de 2011

"O Estado e a Revolução"

Capítulo IV
Eclarecimentos Complementares de Engels[...]

2. Polémica com os Anarquistas

Essa polêmica remonta a 1873. Marx e Engels tinham inserto, numa publicação socialista italiana, uns artigos contra os prudhonianos "autonomistas" ou "antiautoritários", e só em 1913 é que esses artigos apareceram na Neue Zeit, em tradução alemã.

Se a luta política da classe operária - escrevia Marx ridicularizando os anarquistas pela sua negação da política - adquire formas revolucionárias, se os operários, em lugar da ditadura da burguesia, estabelecem a sua ditadura revolucionária, cometem um espantoso crime de lesa-princípios, pois que, para satisfazerem as necessidades do momento, necessidades lamentáveis e profanas, para quebrarem a resistência da burguesia, dão ao Estado uma forma revolucionária e passageira, em vez de deporem as armas e suprimirem o Estado.

Eis aí essa apregoada "supressão" do Estado contra a qual Marx protestava tão violentamente na sua polêmica com os anarquistas! Não é, de maneira nenhuma, contra o desaparecimento do Estado simultaneamente ao das classes, nem contra a abolição do Estado simultaneamente à abolição das classes, mas contra a renúncia dos operários a fazer uso das suas armas, a organizar o emprego da força, isto é, o emprego do Estado, para "quebrar a resistência da burguesia", que se insurgia Marx.

Marx sublinha propositadamente, afim de que não deturpem o verdadeiro sentido da sua luta contra o anarquismo, "a forma revolucionária e passageira" do Estado, necessária ao proletariado. O proletariado precisa do Estado só por um certo tempo. Sobre a questão da supressão do Estado, como objetivo, não nos separamos absolutamente dos anarquistas. Nós sustentamos que, para atingir esse objetivo, é indispensável utilizar provisoriamente, contra os exploradores, os instrumentos, os meios e os processos de poder político, da mesma forma que, para suprimir as classes, é indispensável a ditadura provisória da classe oprimida. Marx escolhe a forma mais incisiva e clara de colocar a questão contra os anarquistas: repelindo o "jugo dos capitalistas", devem os operários "depor as armas", ou, ao contrário, delas fazer uso contra os capitalistas, a fim de quebrar-lhes a resistência? Ora, se uma classe faz sistematicamente uso das suas armas contra uma outra classe, que é isso senão uma "forma passageira" de Estado?

Que todo social-democrata pergunte a si mesmo: Foi a questão do Estado bem colocada na polêmica com os anarquistas? Foi essa questão bem colocada pela imensa maioria dos partidos socialistas oficiais da II Internacional?

Engels desenvolve as mesmas idéias por uma forma bem mais detalhada e mais popular. Em primeiro lugar, põe a ridículo o erro dos prudhonianos, que se intitulam "antiautoritários", isto é, inimigos de toda autoridade, de toda subordinação, de todo poder. Suponhamos uma fábrica, uma estrada de ferro ou um navio no alto-mar - diz Engels. Não será evidente que, sem uma certa subordinação e, por conseqüência, uma certa autoridade ou um certo poder, é impossível fazer funcionar qualquer desses aparelhos técnicos complicados, baseados no emprego das máquinas e na colaboração metódica de um grande número de pessoas?

Se eu opuser esses argumentos - escreve Engels - aos adversários exasperados da autoridade, eles se entrincheirarão atrás desta única resposta: "Sim, é verdade, mas não se trata da autoridade que conferimos a esses delegados, e sim da missão de que os encarregamos". Essa gente imagina que pode mudar as coisas modificando-lhes o nome. Assim, esses profundos pensadores zombam realmente do mundo.

Depois de ter assim demonstrado que autoridade e autonomia são noções relativas, que o seu emprego varia segundo as fases do desenvolvimento social e que é absurdo considerá-las como absolutas; depois de ter acrescentado que o papel das máquinas e da grande indústria vai aumentando constantemente, Engels passa, das considerações gerais sobre a autoridade, para a questão do Estado.

Se os autonomistas se tivessem contentado em dizer que a organização social do futuro não admitirá a autoridade senão nos limites que lhe são traçados pelas condições mesmas da produção, poderíamos entender-nos com eles; mas eles são cegos para todos os fatos que tomam indispensável a autoridade, e declaram guerra a esta palavra.

Por que é que os adversários da autoridade não se limitam a gritar contra a autoridade política, contra o Estado? Todos os socialistas estão de acordo em que o Estudo e, com ele, a autoridade política desaparecerão em conseqüência da revolução social futura; isso significa que as funções públicas perderão o seu caráter político e transformar-se-ão em simples funções administrativas que zelarão pelos interesses sociais. Mas, os adversários da autoridade exigem que o Estado político seja suprimido de uma vez, antes mesmo que sejam suprimidas as condições sociais que o criaram. Reclamam que o primeiro ato da revolução social seja a supressão da autoridade.

Esses senhores já terão visto alguma revolução?

Uma revolução é, certamente, a coisa mais autoritária que há, um ato pelo qual uma parte da população impõe a sua vontade à outra, com auxílio dos fuzis, das baionetas e dos canhões, meios por excelência autoritários; e o partido que triunfou tem de manter a sua autoridade pelo temor que as suas armas inspiram aos reacionários. Se a Comuna de Paris não se tivesse utilizado, contra a burguesia, da autoridade do povo em armas, teria ela podido viver mais de um dia? Não poderemos, pelo contrário, censurá-la por não ter recorrido suficientemente a essa autoridade?

Assim, pois, de duas uma: ou os adversários da autoridade não sabem o que dizem, e nesse caso só fazem criar a confusão, ou o sabem, e nesse caso traem a causa do proletariado. Em qualquer dos casos não fazem senão servir à reação.

As questões abordadas nessa passagem serão examinadas no capítulo seguinte, quando tratarmos das relações da política e da ciência econômica no momento do definhamento do Estado, como sejam a questão da transformação das funções públicas, de funções políticas que são, em simples funções administrativas, e a do "Estado político ". Esta última expressão, suscetível, aliás, de provocar mal-entendidos, evoca o processo do definhamento do Estado: um momento há em que o Estado em vias de definhar pode ser chamado de não-político.

Na passagem de Engels, o que há de mais notável é a forma como ele coloca a questão contra os anarquistas. Os social-democratas, que pretendem ser discípulos de Engels, desde 1873 já entraram milhões de vezes em polêmica com os anarquistas, mas o fizeram precisamente como os marxistas não podem nem devem fazê-lo. A idéia da supressão do Estado, nos anarquistas, é confusa e desprovida de alcance revolucionário - foi como Engels pôs a questão. Os anarquistas recusam-se justamente a ver a revolução na sua origem e no seu desenvolvimento, nas suas tarefas próprias em face da violência, da autoridade, do poder e do Estado.

A crítica do anarquismo, para os social-democratas contemporâneos, reduz-se a esta pura banalidade burguesa: "Nós somos partidários do Estado, os anarquistas não!". Compreende-se que uma tal chatice não deixe de provocar a aversão dos operários, por menos refletidos e revolucionários que sejam. A linguagem de Engels é outra: ele faz ver que todos os socialistas admitem o desaparecimento do Estado, como uma conseqüência da revolução socialista. Em seguida, ele formula concretamente a questão da revolução, a questão precisamente que os social-democratas oportunistas deixam habitualmente de lado, abandonando, por assim dizer, aos anarquistas o monopólio desse "estudo". Ao formular essa questão, Engels pega o boi pelos chifres: não deveria ter a Comuna se utilizado melhor do poder revolucionário do Estado, isto é, do proletariado armado, organizado como classe dominante?

A social-democracia oficial e majoritária tem sempre evitado a questão da missão concreta do proletariado na revolução, ora por um simples sarcasmo farisaico, ora, quando muito, por esta frase evasiva e sofisticada: "Mais tarde se verá!". Mas, também, estão os anarquistas em boa situação para revidar a essa social-democracia que ela está faltando ao seu dever, que é o de fazer a educação revolucionária dos operários. Engels, esse, aproveita a experiência da última revolução proletária para estudar, da forma mais concreta, as medidas que o proletariado deve tomar em relação aos Bancos e ao Estado, e como deve torná-las.

As Lições de Outubro

Capítulos 7 a 9

A Insurreição de Outubro e a "Legalidade" Soviética

Em Setembro, durante a Conferência Democrática, Lenine exigia a insurreição, imediatamente:

"Se queremos tratar a insurreição como marxistas" - escrevia ele - "quer dizer, como uma arte, devemos, simultaneamente e sem perda de tempo, organizar um estado-maior dos destacamentos insurreccionais, repartir as nossas forças, lançar nos pontos mais importantes os regimentos fiéis, cercar o teatro Alexandra, ocupar a fortaleza Pedro-e-Paulo, deter o grande estado-maior e o governo, enviar destacamentos prontos a sacrificarem-se até ao último homem (antes isso do que permitir a penetração do inimigo nas partes centrais da cidade) contra os alunos oficiais e a "divisão selvagem"; mobilizar os operários armados, convocá-los para a suprema batalha, ocupar o telégrafo e o telefone simultaneamente, instalar na central telefónica central o nosso estado-maior insurreccional, pô-lo em ligação telefónica com todas as fábricas e regimentos, com todos os pontos em que a luta armada prossiga, etc. É evidente que tudo isto só é aproximativo. Contudo, vejo-me na obrigação de ter de provar que, actualmente, é impossível mantermo-nos fiéis ao marxismo e à revolução sem se tratar a insurreição como uma arte".

Esta maneira de encarar as coisas pressupunha a preparação e realização da insurreição por interédio e sob a direcção do Partido, devendo a vitória ser sancionada em seguida pelo Congresso dos sovietes. O Comité Central não aceitou esta proposta. A insurreição foi canalizada na via soviética e subordinada ao 2º Congresso dos sovietes. Esta divergência exige uma explicação especial; inserir-se-á depois, naturalmente, não no quadro duma questão de princípios mas duma questão puramente técnica, embora de grande importância prática.

Já referimos como Lenine temia deixar escapar o momento da insurreição. Face às hesitações manifestadas pelas sumidades do Partido, a agitação que subordinava formalmente a insurreição à convocação do 2º Congresso parecia-lhe um inadmissível atraso, uma concessão à irresolução e aos irresolutos, uma perca de tempo, um verdadeiro crime. A partir de fins de Setembro, Lenine insiste várias vezes neste pensamento.

"Existe uma tendência, uma corrente no C. C. e entre os dirigentes do Partido." - escrevia a 29 de Setembro - "a favor da espera pelo Congresso dos Sovietes e contra a imediata tomada do poder, contra a insurreição, imediatamente. Essa tendência, essa corrente, tem que ser combatida". Nos começos de Outubro, Lenine declara: "É um crime contemporizar; esperar pelo Congresso dos sovietes é um formalismo infantil e absurdo, é uma traição à revolução". Nas suas teses à conferência de Petrogrado, em 8 de Outubro, diz: "É preciso lutar contra as ilusões constitucionais e as esperanças no Congresso dos Sovietes, pondo de parte o propósito de esperar, a todo o custo, por ele". Finalmente, em 24 de Outubro, escreve: "É claro que qualquer atraso agora na insurreição, equivale à morte", e mais adiante: "A História não perdoará um atraso a revolucionários que, podendo vencer hoje (e vencerão certamente), se arriscam a deitar tudo a perder se esperam pelo dia de amanhã".

Todas estas cartas, em que cada frase é forjada na bigorna da revolução, revestem um interesse excepcional para a caracterização da Lenine e a avaliação do momento. O sentimento que as inspira é a indignação face à atitude fatalista, expectante, social-democrática, menchevique, para com a revolução, considerada como uma espécie de filme sem fim. Se, regra geral, o tempo é um importante factor da política, em períodos de guerra e revolução a sua importância multiplica-se. Nada nos garante que se possa deixar para amanhã o que se pode fazer hoje. Se é possível hoje lançar a revolta, abater o inimigo e tomar o poder, amanhã talvez já não. Porém, tomar o poder é modificar o curso da história; semelhante acontecimento pode depender de um intervalo, de 24 horas? Certamente que sim. Quando se trata da insurreição armada, os acontecimentos medem-se, não ao quilometro de política mas ao metro de guerra. Em certas condições, deixar passar algumas semanas, alguns dias, às vezes um único dia, equivale a render a revolução, a capitular. Não fosse a pressão, a crítica e a desconfiança revolucionária de Lenine, o partido não chegaria provavelmente a corrigir no momento decisivo a sua linha, até porque a resistência nas altas esferas era muito forte e o estado-maior, na guerra civil como na guerra em geral, desempenha sempre um importante papel.

Mas, ao mesmo tempo, a preparação da insurreição a coberto da preparação do 2.º Congresso dos Sovietes e a palavra de ordem da defesa deste congresso, conferiam-nos evidentemente inestimáveis vantagens. Depois de termos anulado, na qualidade de Soviete de Petrogrado, a ordem de Kerensky a respeito do envio para a frente de dois terços da guarnição, instaurava-se efectivamente o estado de insurreição armada. Lenine, que na altura se encontrava ausente de Petrogrado, não avaliou o facto em toda a sua importância. Se bem me lembro, não se referiu a ele nas suas cartas da altura. Todavia, o desenlace da insurreição de 25 de Outubro pré-determinara-se já, pelo menos em três quartas partes, no momento em que, opondo-nos ao afastamento da guarnição de Petrogrado, criámos o Comité Militar Revolucionário (7 de Outubro), nomeamos os nossos comissários para todas as unidades e instituições militares e, por isso mesmo isolamos completamente, não só o estado-maior da circunscrição militar de Petrogrado, mas também o governo. Tratava-se, em suma, de uma insurreição armada (embora sem derramamento de sangue) dos regimentos de Petrogrado_ contra o Governo Provisório, dirigida pelo Comité Militar Revolucionário e sob a palavra de ordem da preparação para a defesa do 2.º Congresso dos Sovietes, que devia resolver a questão do poder. Por não lhe ser possível, do seu refúgio, conhecer a viragem radical que se produzira, não só no estado de espírito, mas também nas ligações orgânicas de toda a hierarquia militar, após o levantamento "pacífico" da guarnição da capital em meados de Outubro, Lenine aconselhou a lançar a insurreição a partir de Moscovo, onde, na sua opinião, se podia garantir a vitória sem derramamento de sangue. A partir do mome1nto em que, por ordem do Comité Militar Revolucionário, os batalhões se recusaram a abandonar a cidade, estava-se perante uma insurreição vitoriosa na capital, que os derradeiros farrapos do Estado democrático burguês mal disfarçavam. A insurreição de 25 de Outubro teve só um carácter complementar. Por isso foi tão indolor. Em Moscovo, pelo contrário, embora já se tivesse instaurado o poder do Conselho dos Comissários do Povo, a luta foi muito mais longa e sangrenta. Se tivesse começado em Moscovo, antes do golpe de força de Petrogrado, a insurreição ainda teria sido, evidentemente, de mais longa duração e o seu êxito muito duvidoso. Ora, uma derrota em Moscovo teria uma grave repercussão em Petrogrado. Se é certo que, mesmo com plano de Lenine, a vitória não se tornava impossível, a via tomada pelos acontecimentos revelou-se, contudo, muito mais econômica e vantajosa, garantindo mais completamente a vitória.

Só porque a insurreição armada, "silenciosa", quase "legal" - pelo menos em Petrogrado - era já um facto consumado (senão em nove décimos pelo menos em três quartos), é que nos foi possível fazer coincidir mais ou menos exactamente a tomada do poder com o momento da convocação do 2.º Congresso dos Sovietes. Esta insurreição era "legal" no sentido de surgir das concessões "normais" da dualidade de poder. Já tinha acontecido muitas vezes, mesmo quando estava nas mãos dos conciliadores o soviete de Petrogrado controlar ou modificar as decisões do governo. Era uma forma de se deixar enquadrar na constituição do regime conhecido pelo nome de kerenskismo. Nós, bolcheviques, quando obtivemos a maioria no soviete de Petrogrado, nada mais fizemos do que prolongar e acentuar os métodos de dualidade do poder. Encarregamo-nos de controlar e rever a ordem de envio da guarnição para a frente. Precisamente por isso, cobrimos a insurreição efectiva da guarnição de Petrogrado com as tradições e procedimentos da dualidade do poder. Além disso, unindo, na agitação que fazíamos, a questão do poder e a convocação do 2.º Congresso dos Sovietes, desenvolvemos e aprofundamos as tradições desta dualidade, preparando o quadro da legalidade sovietista para a insurreição bolchevique em toda a Rússia. Não alimentávamos as ilusões constitucionais sovietistas das massas, porque, sob a palavra de ordem de luta pelo 2.º Congresso, conquistávamos para a nossa causa, agrupando-as, as forças do exército revolucionário. Simultaneamente e muito mais do que era de esperar, conseguimos atrair os nossos inimigos, os conciliadores, para a armadilha da legalidade sovietista. Politicamente, é sempre perigoso o recurso a ardis, sobretudo em épocas revolucionárias, pois além de ser difícil enganar o inimigo, corre-se o risco de induzir em erro as massas que nos seguem. O nosso "ardil" foi um êxito completo, não por ser uma invenção artificial de um estratega engenhoso, desejando evitar a guerra civil, mas por resultar naturalmente da decomposição do regime conciliador e das suas flagrantes contradições. O Governo Provisório queria desfazer-se da guarnição. Os soldados não queriam ir para a frente. Dando a este sentimento natural uma expressão política, um objectivo revolucionário e uma cobertura "legal", garantimos a unidade no seio da guarnição, ligando-a estreitamente aos operários de Petrogrado. Na sua situação desesperada e caótica, os nossos inimigos tinham, pelo contrário, tendência para considerar a legalidade sovietista como moeda segura. Queriam ser enganados, pelo que lhes demos todas as possibilidades disso.

Urna luta pela legalidade sovietista prosseguia entre nós e os conciliadores. Para as massas, a fonte do poder estava nos Sovietes. Deles saíram Kerenski, Tseretelli e Skobelev. Também nós estávamos estreitamente ligados aos Sovietes, mas pela palavra de ordem fundamental: todo o poder aos Sovietes. A burguesia defendia a sua filiação na Duma do Império; os conciliadores, embora defendessem a sua nos Sovietes, pretendiam reduzir o seu papel à insignificância. Quanto a nós, provenientes dos Sovietes, o que nos interessava era transmitir-lhes o poder. Não podendo romper ainda os 1aços com os Sovietes, os conciliadores apressavam-se a estabelecer uma ponte entre a legalidade sovietista e o parlamentarismo. Convocaram, para o efeito, a Conferência Democrática, criando o pré-Parlamento. Fosse como fosse, a participação dos Sovietes no pré-Parlamento sancionava a sua acção. Os conciliadores esforçavam-se por surpreender a revolução com o engodo de legalidade sovietista, canalizando-a no parlamentarismo burguês.

Todavia também nós estávamos interessados em utilizar a legalidade sovietista. No final da Conferência Democrática, arrancamos aos conciliadores o consentimento para a convocação do 2.º Congresso dos Sovietes. Este congresso deixou-os extremamente perplexos: com efeito, não podiam opor-se à sua convocação sem romper com a legalidade sovietista; por outro lado, compreendiam perfeitamente que este congresso, pela sua composição, nada de bom lhes prometia. Precisamente por isso é que apelávamos tanto mais instantemente para que fosse realizado, enquanto senhor dos destinos do país, convidando, em toda a nossa propaganda, a apoiá-lo e protegê-lo dos inevitáveis ataques da contra-revolução. Se é certo que os conciliadores nos apanharam na ratoeira da legalidade sovietista com o pré-Parlamento saído dos Sovietes, por sua vez, através do 2.0 Congresso dos Sovietes, encurralamo-las nessa mesma legalidade. Uma coisa era organizar uma insurreição armada sob a palavra de ordem da tomada do poder pelo partido, outra, muito diferente, preparar e depois realizar a insurreição, invocando a necessidade de defender os direitos do Congresso dos Sovietes.

Assim, se bem que quiséssemos fazer coincidir a tomada do poder com o 2.º Congresso dos Sovietes, de modo nenhum tivemos a esperança ingênua de que este, por si só, pudesse resolver a questão do poder. Este fetichismo da forma sovietista era-nos completamente alheio. No domínio da política, da organização e da técnica militar, o trabalho necessário à conquista do poder ocupáva-nos activamente. Contudo, procedíamos legalmente quando nos referíamos ao próximo congresso que devia decidir a questão do poder.

Lançando a ofensiva em toda a linha, dávamos mostras de nos defender. Pelo contrário, se se quisesse defender seriamente, o Governo Provisório deveria proibir a convocação do Congresso dos sovietes, dando, por isso mesmo, pretexto à parte adverso para a insurreição armada (para o Congresso era o pretexto mais vantajoso). Além disso, não só púnhamos o Governo Provisório numa situação política desvantajosa, mas entorpecíamos também a confiança que nele muitos depositavam.

Os membros do governo acreditavam sincera-mente tratarmos do parlamentarismo sovietista, de um novo Congresso em que seria adoptada uma nova resolução sobre o poder no espírito das dos sovietes de Petrogrado e Moscovo, depois do que, referindo-se ao pré-Parlamento e à próxima Assembleia Constituinte, o governo deixara de nos venerar, colocando-nos numa situação ridícula. Era assim que os pequenos burgueses mais razoáveis pensavam, como prova incontestavelmente o testemunho de Kerensky.

Este conta nas suas memórias a discussão tempestuosa que teve com Dan e outros na noite de 24 para 25 de Outubro, a propósito da insurreição que já se desenvolvia profundamente.

"Logo de início Dan declarou-me" - conta Kerensky - "estarem muito melhor informados que eu, pelo que exagerava os acontecimentos sob a influência das comunicações do meu estado-maior reacionário. Garantiu-me depois que a resolução da maioria do soviete, desagradável "para o amor-próprio do governo", contribuiria indiscutivelmente para uma viragem favorável no estado de espírito das massas cujo efeito se fazia sentir já, e que a influência da propaganda bolchevique "decairia agora rapidamente".

"Por outro lado, na sua opinião, nas conversações com os chefes da maioria sovietista, os bolcheviques declararam estar prontos a "submeter-se à vontade da maioria dos sovietes", dispondo-se a tomar "de amanhã em diante" todas as medidas para abafar a insurreição que "deflagrara contra a sua vontade e sem a sua sanção". Em conclusão, Dan lembrou que, "de amanhã em diante" (sempre o dia de amanhã), os bolcheviques dissolveriam o seu estado-maior militar, declarando que todas as medidas por mim tomadas para reprimir a insurreição só contribuiriam para "exasperar" as massas e que a minha "intromissão" só servia para "impedir os representantes da maioria dos sovietes de conseguirem a liquidação da insurreição nas suas conversações com os bolcheviques".

"Ora, na altura em que Dan me fazia esta notável comunicação, os destacamentos da guarda vermelha iam ocupando sucessiva-mente os edifícios governamentais. E, quase imediatamente após a saída de Dan e dos seus camaradas do Palácio de Inverno, o ministro dos Cultos, Kartachev, de volta da sessão do Governo Provisório, foi detido na Míllionnaia e conduzido ao Smolni, aonde Dan regressara para prosseguir as entrevistas com os bolcheviques. Há que reconhecer que os bolcheviques agiram então com grande energia e completa habilidade. Numa altura em que a insurreição estava no auge e as "tropas vermelhas" operavam por toda a cidade, alguns dos chefes bolcheviques especializados na tarefa esforçavam-se (não sem êxito) por lograr os representantes da "democracia revolucionária". Esses finórios passaram toda a noite numa discussão interminável sobre as diversas fórmulas que deviam pretensamente servir de base a uma reconciliação e liquidação da insurreição. Com este método nas "conversações", os bolcheviques ganharam um tempo extremamente precioso. As forças combativas dos s. - r. e mencheviques não foram mobilizadas a tempo. Isso é que era preciso demonstrar!" (A. Kerenski, De longe).

Com efeito, isso é que era preciso demonstrar! Como se vê, os conciliadores deixaram-se completamente apanhar na ratoeira da legalidade sovietista. A suposição de Kerenski, segundo a qual os bolcheviques especializados nesta missão induziram em erro os mencheviques e os s. - r. a respeito da próxima liquidação da insurreição, é falsa. Na realidade, só tomaram parte nas conversações os bolcheviques que verdadeiramente queriam a liquidação da insurreição e a constituição dum governo socialista com base num acordo entre os partidos. Objectivamente, porém, estes parlamentares prestaram à insurreição um certo serviço, alimentando com as suas as ilusões do inimigo. Mas só porque o Partido, apesar dos seus conselhos e avisos, com uma infatigável energia, prosseguia e consumava a insurreição, puderam prestar à revolução esse serviço.

Era preciso um excepcional concurso de circunstâncias, grandes e pequenas, para o êxito desta larga manobra envolvente. Era preciso, acima de tudo, um exército que já não quisesse bater-se. No momento da revolução, se não dispuséssemos de um exército camponês de vários milhares de homens, vencido e descontente, todo o seu desenvolvimento revolucionário assumiria um aspecto muito diferente, em particular no primeiro período, de Fevereiro a Outubro, inclusive. Só nestas condições era possível realizar exitosamente com a guarnição de Petrogrado a experiência que pré-determinava a vitória de Outubro. Não se pode pretender erigir em lei a combinação especial duma insurreição tranqüila, quase despercebida, com a defesa da legalidade sovietista contra os kornilovianos. Muito pelo contrário, pode-se afirmar com segurança que esta experiência em parte alguma jamais se repetirá da mesma forma. Porém, é necessário estudá-la cuidadosamente. Este estudo alargará o horizonte de cada revolucionário, revelando4he a diversidade dos métodos e meios susceptíveis de serem postos em acção, na condição de que se fixe um objectivo claro e se tenha uma nítida ideia da situação e da vontade de travar a luta até ao fim.

Em Moscovo a insurreição foi muito mais prolongada, causando mais vítimas. E isto porque a guarnição de Moscovo não fora submetida, como a de Petrogrado, a uma preparação revolucionária (envio dos batalhões para a frente).

A insurreição armada - repetimos - efectuou-se por duas vezes em Petrogrado: na primeira quinzena de Outubro, quando os regimentos se recusaram a cumprir as ordens do comando, submetendo-se à decisão do soviete que correspondia inteiramente ao seu estado de espírito; e em 25 de Outubro, quando já só bastava uma pequena insurreição complementar para derrubar o governo de Fevereiro. Em Moscovo a insurreição efectuou-se de uma só vez. Esta provavelmente a principal razão por que se prolongou. Mas há ainda uma outra: uma certa irresolução por parte da direção. Passou-se, por várias vezes, das operações militares às conversações, voltando-se a seguir à luta armada. Se as hesitações da direcção - sentidas perfeitamente pelas tropas - são, regra geral, politicamente prejudiciais, durante uma insurreição tornam-se mortalmente perigosas. Neste momento, muito embora tivesse já perdido confiança nas suas próprias forças, a classe dominante detinha ainda o aparelho governamental. À classe revolucionária incumbia a tarefa de conquistar o aparelho estatal, para o que lhe era necessário confiar nas suas próprias forças. A partir do momento em que arrastou os trabalhadores na esteira da insurreição, o Partido teve que retirar daí todas as conseqüências necessárias. Na insurreição, tal como na guerra - e muito menos no primeiro caso - não se podem tolerar hesitações ou perdas de tempo. Marcar passo, tergiversar, ainda que por algumas horas, restitui parcialmente aos dirigentes a confiança em si próprios, retirando aos insurrectos parte da sua certeza. Ora, esta confiança, esta certeza, determinando a correlação das forças, decide o desenlace da insurreição. Este é o ângulo do qual é necessário estudar, par e passo, o andamento das operações militares em Moscovo, na sua combinação com a direcção política.

Seria extremamente importante assinalar ainda alguns dos pontos em que a guerra civil decorreu sob condições especiais (por exemplo, quando se complexificava com o elemento nacional). Um tal estudo, baseando-se no exame minucioso dos factos, é de natureza a enriquecer consideravelmente a nossa concepção do mecanismo da guerra civil e, por isso mesmo, a facilitar a elaboração de determinados métodos, regras, processos, com um carácter suficientemente geral para puderem ser introduzidos numa espécie de estatuto da guerra civil. A verdade é que o desenlace em Petrogrado determinava numa larga medida a guerra civil na província, embora se revelando morosa em Moscovo. A revolução de Fevereiro danificara consideravelmente o antigo aparelho -herança que o Governo Provisório era incapaz de renovar e consolidar. Por conseguinte, entre Fevereiro e Outubro o aparelho estatal só funcionava pela inércia burocrática. A província habituara-se se orientar por Petrogrado: fizera-o em Fevereiro, voltando a fazê-lo em Outubro. A nossa grande vantagem estava em prepararmos o derrube dum regime que ainda não tivera tempo de se formar. A extrema instabilidade do aparelho estatal de Fevereiro e a falta de confiança em si mesmo facilitaram singularmente o nosso trabalho, mantendo a certeza das massas revolucionárias e do próprio Partido.

Na Alemanha e na Áustria, depois de 09 de Novembro de 1918, houve uma situação análoga. Nesse caso, porém, foi a própria social-democracia a colmatar as fendas do aparelho estatal, ajudando ao restabelecimento do regime burguês republicano que, apesar de ainda hoje não poder ser considerado modelo de estabilidade, conta já no entanto com seis anos de existência. Quanto aos outros países capitalistas, esses não gozarão desta vantagem, quer dizer, desta proximidade entre a revolução burguesa e a proletária. Há já muito tempo que realizaram a sua revolução de Fevereiro. É certo que na Inglaterra ha ainda bastantes sobrevivências feudais; mas seria impróprio falar de uma revolução burguesa independente na Inglaterra. Logo que tenha conquistado o poder, o proletariado inglês, com a primeira vassourada que der, livrará o país da monarquia, dos lords, etc. A revolução proletária no Ocidente ver-se-á a braços com um Estado burguês completamente formado. Q que não quer dizer que depare com um aparelho estável, dado que a própria possibilidade de insurreição proletária pressupõe uma desagregação do Estado capitalista, bastante adiantada. Se entre nós a revolução de Outubro foi uma luta contra um aparelho estatal que ainda não tivera tempo de se formar desde Fevereiro, nos outros países a insurreição terá contra si um aparelho estatal em estado de progressivo desmembramento. Regra geral é de supor que, tal como dissemos no IV Congresso da I.C., a resistência da burguesia nos antigos países capitalistas será muito mais forte do que entre nós; o proletariado a lançará a vitória mais dificilmente; em contrapartida, a conquista do poder garantir-lhe-á uma situação muito mais firme e estável do que a nossa logo após Outubro. Entre n6s, a guerra civil só se desenvolveu verdadeiramente depois da tomada do poder pelo proletariado nos principais centros urbanos e industriais, preenchendo os três primeiros anos de existência do poder sovietista. Há muitas razões para que o proletariado tenha mais dificuldade em conquistar o poder na Europa central e ocidental; em contrapartida, depois da tomada do poder, ficará com os braços muito mais livres do que nós. É evidente que estas conjunturas só podem ter um carácter condicional. O desenlace dos acontecimentos dependerá, numa larga medida, da ordem segundo a qual a revolução se processar nos diferentes países da Europa, das possibilidades de intervenção militar e da força econômica e militar da União Soviética nesse momento. Seja como for, a eventualidade muito provável de a conquista do poder vir a chocar-se com uma resistência das classes dominantes na Europa e na América, muito mais séria, muito mais implacável e reflectida do que entre nós, obriga-nos a considerar a insurreição armada e a guerra civil em geral, como uma arte.

Sovietes e Partido na Revolução Proletária

Os sovietes dos deputados operários surgiram entre nós em 1905 e 1917, a partir do próprio movimento, como forma de organização natural a certo nível da luta. Mas os jovens partidos europeus que aceitaram os sovietes mais ou menos como "doutrina" e "princípio", estão sempre expostos ao perigo de uma concepção fetichista dos sovietes, considerados como factores autônomos da revolução. Com efeito, apesar da imensa vantagem que apresentam como organização de luta pelo poder, é perfeitamente possível que a insurreição se desenvolva com base noutra forma de organização (comitês de usinas, sindicatos) e os sovietes sujam apenas como órgão do poder no momento da insurreição ou mesmo depois da vitória.

Muito elucidativa, deste ponto de vista, é a luta em que Lenine se empenhou depois das jornadas de Julho contra o fetichismo sovietista. Uma vez que os sovietes s.-r. e mencheviques se tinham tornado em Julho organizações que incitavam abertamente à ofensiva os soldados e perseguiam os bolcheviques, o movimento revolucionário das massas operárias podia e devia procurar outras vias. Lenine indicou os comitês de fábrica como organização da luta pelo poder. O movimento teria muito provavelmente tomado essa direcção se não fosse a insurreição de Kornilov que obrigou os sovietes conciliadores a defender-se a si mesmos e permitiu aos bolcheviques insuflar-lhes de novo o espírito revolucionário, ligando-os estreitamente às massas por intermédio da sua esquerda, quer dizei>dos bolcheviques.

Tal como a recente experiência da Alemanha demonstrou, esta questão reveste uma enorme importância internacional. Neste país, os sovietes foram por várias vezes construídos como órgãos da insurreição, como órgãos do poder, sem o deter, O resultado foi que em 1923 o movimento das massas proletárias e semi-proletárias começou a agrupar-se à volta dos comitês de fábrica, que no fundo preenchiam as mesmas funções que incumbiam entre nós aos sovietes no período que precedeu a luta directa pelo poder. No entanto, em Agosto e Setembro, alguns camaradas propuseram proceder-se imediatamente à criação de sovietes na Alemanha. Depois de longos e ardentes debates a proposta foi repelida, e com razão. Como os comitês de fábrica já se tinham tornado efectivamente pontos de concentração das massas revolucionárias, os sovietes desempenhariam no período preparatório um papel paralelo ao dos comitês de fábrica, não sendo senão uma forma sem conteúdo. Nada mais fariam do que desviar o pensamento das tarefas materiais da insurreição (exército, polícia, centúrias, caminhos de ferro, etc.) reportando-os a uma forma de organização autônoma. Por outro lado, a criação dos sovietes como tais, antes da insurreição, teria sido como que urna proclamação de guerra sem efeito. O governo, obrigado a tolerar os comitês de fábrica por reunirem massas consideráveis à sua volta, fustigaria os primeiros sovietes enquanto órgão oficial que procurava conquistar o poder. Os comunistas ver-se-iam obrigados a assumir a defesa dos sovietes enquanto organização. A luta decisiva não visaria a tomada ou defesa de posições materiais, não se desenrolando no momento, por nós escolhido, em que a insurreição decorreria necessariamente do movimento das massas; teria, sim, rebentado por causa de uma forma de organização, os sovietes, no momento escolhido pelo inimigo. Ora, é evidente que todo o trabalho preparatório da insurreição podia ser subordinado com toda a eficiência à forma de organização dos comitês de fábrica que já tinham tido tempo de se tornar organizações de massas, continuando a aumentar e a fortificar-se, e davam carta branca ao Partido em relação à fixação da data da insurreição. Evidentemente que os sovietes, numa certa etapa, teriam que surgir. Nas condições que acabamos de indicar, é duvidoso que tivessem surgido no auge da luta como órgãos directos da insurreição, pois daí poderia resultar uma dualidade de direcção revolucionária no momento crítico. Não é preciso mudar de cavalo quando se atravessa uma torrente, diz um provérbio inglês. É possível que, depois da vitória nas principais cidades, os sovietes começassem a aparecer em todos os pontos do país. Em todo o caso, a insurreição vitoriosa provocaria necessariamente a criação dos sovietes como órgãos do poder.

Não nos esqueçamos que, entre nós, os sovietes surgiram já na etapa "democrática" da revolução, sendo então legalizados de qualquer forma; em seguida herdamo-los e utilizamo-los. O mesmo não sucederá nas revoluções proletárias do Ocidente. Nessas, os sovietes criar-se-ão, na maioria dos casos, por apelo dos comunistas, tornando-se em seguida órgãos directos da insurreição proletária. É evidentemente possível que a desorganização do aparelho estatal burguês se torne muito forte antes da conquista do poder pelo Pro1etariado o que permitiria criar sovietes como órgãos declarados da preparação da insurreição. Mas é muito pouco provável que esta seja a regra geral. Na maior parte dos casos só nos últimos dias se conseguem criar os sovietes, como órgãos directos da massa pronta a insurgir-se. Finalmente, é também muito possível que os sovietes surjam após o momento crítico da insurreição e até depois da sua vitória, como órgãos do novo poder. É preciso encarar constantemente todas estas eventualidades de modo a não cair no fetichismo de organização e não transformar os sovietes, de forma de luta flexível e vital, em "princípio" de organização, introduzido no movimento do exterior e entravando o seu desenvolvimento regular.

Declarou-se recentemente na nossa Imprensa desconhecermos por que porta entraria a revolução proletária na Inglaterra: se pelo partido comunista, se pelos sindicatos. Decidir é impossível. Esta maneira de pôr a questão, que pretende atingir a envergadura histórica, é radicalrnente falsa e muito perigosa, pois oculta a principal lição dos últimos anos. Se não houve nenhuma revolução vitoriosa no fim da juerra, foi por não haver um partido. Esta constatação aplica-se a toda a Europa. Seguindo par e passo o movimento revolucionário nos diferentes países, poder-se-á verificar a sua Justeza. No que diz respeito a Alemanha, se a massa fosse dirigida pelo Partido tal como se impunha, é claro que a revolução em 1918 e 1919 poderia vir a triunfar. Em 1917, o exemplo da Finlândia mostrou-nos que o movimento revolucionário se desenvolvia em condições excepcionalmente favoráveis, a coberto e com a ajuda militar directa da Rússia revolucionária. Mas a maioria da direcção do Partido finlandês, sendo como era social-democrata, votou à derrota a revolução. Não menos claramente sobressai esta lição da experiência da Hungria. Neste país os comunistas, aliados aos social-democratas de esquerda, embora não tendo conquistado o poder, receberam-no das mãos da burguesia apavorada. A revolução húngara, vitoriosa sem combate nem vitória, viu-se privada de uma direcção combativa desde o início, O Partido comunista fundiu-se com o Partido social-democrático, demonstrando com isso nem mesmo ser verdadeiramente comunista e por conseguinte incapaz de conservar o poder que obtivera tão facilmente, apesar do espírito combativo dos proletários húngaros. A. revolução proletária não pode triunfar sem o Partido, contra o Partido ou através dum sucedâneo dele. Este é o principal ensinamento dos últimos dez anos. É certo que os sindicatos ingleses podem tornar-se uma poderosa alavanca da revolução proletária; em certas condições e durante um determinado período, poderão até, por exemplo, substituir os Sovietes operários. Mas, sem o apoio do Partido comunista e, com mais forte razão, contra ele, não serão capazes disso; só se a propaganda comunista se tornar preponderante no seu seio é que poderão desempenhar esse papel. Pagamos demasiado caro esta lição sobre o papel e importância do Partido, para não a termos retido integralmente.

Nas revoluções burguesas, a consciência, a preparação e o método desempenharam um papel muito menos relevante do que são chamados a desempenhar e desempenharam já nas revoluções do proletariado. A força motriz da revolução burguesa foi também a massa, mas muito menos consciente e organizada do que nos nossos dias. A direcção pertencia as diferentes fracções da burguesia, que dispunha da riqueza, da instrução e da organização (municipalidades, universidades, imprensa, etc.). A monarquia burocrática defendeu-se empiricamente, agindo completamente ao acaso. A burguesia escolheu o momento favorável em que pudesse, explorando o movimento das massas populares, lançar todo o seu peso social no prato da balança e conquistar o poder. Porém, na revolução proletária, o proletariado é não só a principal força combativa, mas também, na pessoa da sua vanguarda, a força dirigente. Só o partido do proletariado pode desempenhar na revolução proletária o papel que o poderio da burguesia, a sua instrução, as suas municipalidades e universidades desempenharam na revolução burguesa. O seu papel é tanto maior quanto mais formidavelmente recrudesceu a consciência de classe do seu inimigo. Ao longo de séculos de dominação, a burguesia elaborou uma escola política incomparavelmente superior à da antiga monarquia burocrática. Se o parlamentarismo foi, até certo ponto, para o proletariado, uma escola de preparação para a revolução ainda foi mais uma escola de estratégia contra-revolucionária para a burguesia. Como prova, basta indicar que foi pelo parlamentarismo que a burguesia educou a social-democracia, hoje em dia a mais poderosa proteção da propriedade individual. Tal como as primeiras experiências provaram, a época da revolução social na Europa será uma época de batalhas, não só implacáveis, mas também calculadas, muito mais calculadas do que entre nós, em 1917.

Impõe-se-nos, por isso, abordar as questões da guerra civil e, em particular, da insurreição, de forma diferente da actual. Na esteira de Lenine, repetimos freqüentemente as palavras de Marx: "A insurreição é uma arte". Porém, se não se estudarem os elementos essenciais da arte da guerra civil com base na vasta experiência acumulada durante os últimos anos, tal pensamento nada mais será do que uma frase vazia. É preciso declarar abertamente que a nossa indiferença pelas questões da insurreição armada é testemunho da força considerável que a tradição Social-democrática conserva no nosso seio. O partido que considerar superficialmente as questões da guerra civil na esperança de que tudo se combine por si só no momento necessário, sofrerá com toda a certeza uma derrota. É preciso estudar colectivamente e assimilar a experiência das batalhas proletárias desde 1917.

A história dos agrupamentos do Partido em 1917, esboçada mais atrás, representa igualmente uma parte essencial da experiência da guerra civil, assumindo uma importância directa para a política da Internacional Comunista. Já dissemos, mas voltamos a dizer: o estudo das nossas divergências não pode nem deve ser considerado, de maneira nenhuma, como dirigido contra os camaradas que defenderam então uma política errada. Mas, por outro lado, seria inadmissível riscar o capítulo mais importante da história do Partido, só porque todos os seus membros não andavam então a par da revolução do proletariado. O Partido pode e deve conhecer todo o seu passado para o apreciar convenientemente e pôr as coisas nos seus devidos lugares. A tradição dum partido revolucionário não é feita de reticências, mas de clareza política.

A história garantiu ao nosso Partido incomparáveis vantagens revolucionárias. Tradições de luta heróica contra o czarismo, hábitos, processos revolucionários ligados às condições de acção clandestina, elaboração teórica da experiência, revolucionária de toda a humanidade, luta contra o menchevismo, contra a corrente dos narodniki, contra o conciliacionismo, experiência da Revolução de 1905, elaboração teórica desta experiência durante os anos da contra-revolução, exame dos problemas do movimento operário internacional do ponto de vista das lições de 1905: eis o que, no conjunto, deu ao nosso Partido uma têmpera excepcional, uma superior clarividência, uma envergadura revolucionária sem paralelo. E, contudo, no momento da acção decisiva, formou-se neste partido tão bem preparado, ou melhor, nas suas esferas dirigentes, um grupo de antigos bolcheviques, revolucionários experientes, que se opôs violentamente ao golpe de força proletário e assumiu em todas as questões essenciais, durante o período mais critico da revolução - de Fevereiro de 1917 a Fevereiro de 1918 - uma posição social-democrática. Foi preciso a excepcional influência de Lenine no Partido para preservar este e a revolução das funestas conseqüências de tal estado de coisas. Eis o que nunca se deverá esquecer se quisermos que os Partidos comunistas dos outros países aprendam alguma coisa na nossa escola. A questão da selecção do pessoal dirigente tem uma importância excepcional para os Partidos da Europa Ocidental. É o que demonstra, entre outras, a experiência do fracasso de Outubro de 1923 na Alemanha. Mas esta selecção deve efectuar-se de acordo com o princípio da acção revolucionária... Dispusemos de bastantes ocasiões na Alemanha para pôr à prova o valor dos dirigentes do Partido no momento das lutas directas. Sem esta prova, todos os outros critérios não poderiam ser considerados seguros. Ao longo dos últimos anos, a França teve muito menos convulsões revolucionárias, mesmo que limitadas. Houve contudo algumas explosões ligeiras de guerra civil quando o Comitê Directivo do Partido e os dirigentes sindicais tiveram que reagir face a questões urgentes e importantes (por exemplo: o meeting sangrento de 11 de Janeiro de 1924). O estudo atento de episódios deste gênero fornece-nos dados inestimáveis que permitem apreciar o valor da direcção do Partido e a conduta dos seus chefes e diferentes órgãos. Não tomar em consideração estes dados para a selecção dos homens, é caminhar inevitavelmente para a derrota, pois que, sem direcção perspicaz, resoluta e corajosa do Partido, a vitória da revolução proletária é impossível.

Qualquer partido, mesmo o mais revolucionário, elabora inevitavelmente o seu conservadorismo de organização: caso contrário, não alcançaria a estabilidade necessária. Mas, no caso em questão, tudo depende do grau. Num partido revolucionário a dose necessária de conservadorismo deve combinar-se com uma total libertação de rotina, flexibilidade de orientação e audácia actuante. Estas qualidades verificam-se melhor nas viragens históricas. Lenine - vimo-lo mais atrás - dizia que quando sobrevinha uma mudança brusca na situação e, portanto nas tarefas, os partidos, mesmo os mais revolucionários, continuavam na maior parte dos casos a seguir a sua linha anterior, tornando-se ou ameaçando tornar-se, por isso mesmo, um travão para o desenvolvimento revolucionário. O conservadorismo do Partido, tal como a sua iniciativa revolucionária, encontram nos órgãos da direcção a sua expressão mais concentrada. Ora, os Partidos comunistas europeus têm ainda que efectuar a sua mais brusca viragem: aquela em que passarão do trabalho preparatório à tomada do poder. É a que mais qualidades exige, mais responsabilidades impõe e a mais perigosa. Deixar escapar tal momento é o maior desastre de que o Partido pode ser vitima.

A experiência das batalhas dos últimos anos na Europa e principalmente na Alemanha, considerada á luz da nossa própria experiência, mostra-nos que há duas categorias de chefes com tendência a empurrar para trás o Partido na altura de dar em frente o maior salto. Uns são levados a ver principalmente as dificuldades e os obstáculos, apreciando cada situação com o "parti pris", inconsciente por vezes, de se furtar a acção. Para esses o marxismo torna-se um método utilizado para motivar a impossibilidade de acção revolucionária, Os mencheviques russos representavam os espécimes mais característicos deste tipo de chefes. Este não se limita, porém, ao menchevismo, revelando-se no momento mais crítico no interior do partido mais revolucionário e no seio de militantes que ocupam os postos mais elevados. Os representantes da outra categoria são agitadores superficiais. Enquanto não forem de encontro aos obstáculos, não os vêem. Quando chega o momento da acção decisiva, o hábito que têm de iludir as dificuldades reais jogando com as palavras, o seu extremo optimismo em todas as questões, transforma-se inevitavelmente em impotência e pessimismo. Para o primeiro tipo, para o revolucionário mesquinho, amolador ambulante, as dificuldades da tomada do poder nada mais são do que a acumulação e multiplicação de todas as dificuldades que está habituado a ver no caminho. Para o segundo tipo, o optimista superficial, as dificuldades da acção revolucionária surgem sempre subitamente. No período de preparação, a conduta destes dois homens é diferente: um mostra-se como que um céptico com quem é impossível firmemente contar do ponto de vista revolucionário; em contrapartida, o outro pode parecer um revolucionário ardente. Mas no momento decisivo ambos andam de mãos dadas, insurgindo-se contra a insurreição. Contudo, só na medida em que torna capaz o Partido, e sobretudo os seus órgãos dirigentes, de determinar o momento da insurreição e de a dirigir, é que todo o trabalho de preparação tem valor. Porque a tarefa do Partido comunista é conquistar o poder a fim de proceder à refundição da sociedade.

Nos últimos tempos, tem-se falado e escrito freqüentemente sobre a necessidade de bolchevização da Internacional Comunista. É uma tarefa urgente, indispensável, cuja necessidade se faz sentir mais imperiosamente ainda depois das terríveis lições que nos foram dadas na Bulgária e na Alemanha, o ano passado. O bolchevismo não é uma doutrina (quer dizer, não tão-somente uma doutrina), mas um sistema de educação revolucionária para a realização da revolução proletária. O que é bolchevisar os Partidos comunistas? É educá-los, seleccionar no seu seio pessoal dirigente que não fuja no momento da sua revolução de Outubro.

Duas Palavras Sobre Este Livro

A primeira fase da revolução "democrática" vai da Revolução de Fevereiro à crise de Abril e à sua solução, a 06 de Maio, com a criação dum governo de coligação no qual participavam os mencheviques e os narodnikis. Por só ter chegado a Petrogrado a 5 de Maio, na véspera da constituição do governo de coligação, o autor da presente obra não participou nos acontecimentos desta primeira fase. A primeira etapa da revolução e as suas perspectivas são assinaladas nos artigos escritos na América. Em tudo o que contêm de essencial, suponho que estes artigos estão de acordo com a análise da Revolução feita por Lenine nas suas Cartas de longe.

Logo que cheguei a Petrogrado, trabalhei em conformidade absoluta com o Comitê Central dos bolcheviques. Escusado será dizer que apoiei totalmente a teoria de Lenine sobre a conquista do poder pelo proletariado. No que diz respeito ao campesinato, não tive nem por sombras nenhuma divergência com Lenine, que terminava então a primeira etapa da sua luta contra os bolcheviques de direita, arvorando a palavra de ordem da "Ditadura democrática do proletariado e do campesinato". Até á minha adesão formal ao partido, participei na elaboração duma série de decisões e documentos, selados pelo Partido. O único motivo que me fez diferir por três meses a minha adesão ao Partido foi o desejo de acelerar a fusão dos bolcheviques com os melhores elementos da organização intersectorialista e, de maneira geral, com os internacionalistas revolucionários. Prossegui esta política com a total aprovação de Lenine.

A redacção desta obra chamou-me a atenção para uma frase num dos meus artigos dessa época em favor da unificação, na qual fazia notar o "estreito espírito de circulo" dos bolcheviques, em matéria de organização. Certamente que pensadores profundos como Sorine não deixarão de ligar directamente esta frase às divergências sobre o 1.º parágrafo dos estatutos. Agora que reconheci, verbal e efectivamente, os meus erros em matéria de organização, não acho necessário empenhar-me numa discussão sobre o assunto. Até o leitor menos avisado, encontrará nas condições concretas do momento uma explicação muito mais simples e directa para a expressão precipitada. Muitos operários intersectorialistas mantinham-se ainda numa desconfiança muito grande a respeito da política de organização do Comitê de Petrogrado. Foi a isso que repliquei no meu artigo:

"O espírito de círculo, herança do passado, ainda existe; mas, para que diminua, os intersectorialistas devem deixar de prosseguir uma existência isolada, à parte."

A minha "proposta" puramente polémica, no 1º Congresso dos Sovietes, de formar um governo com uma dúzia de Piechekhanov foi interpretada - penso que por Sukhanov - como manifestativa duma inclinação pessoal por Piechekhanov e, simultaneamente, como uma táctica diferente da de Lenine. Evidentemente que isso é um absurdo. Quando exigi que os Sovietes, dirigidos pelos mencheviques e socialistas-revolucionários, tomassem o poder, o nosso Partido "exigia" por isso mesmo um ministério composto por pessoas como Piechekhanov, Tchernov e Dan; qualquer deles podia servir para facilitar a transmissão do poder, da burguesia para o proletariado. Talvez Piechekhanov conhecesse um pouco mais de estatística e desse a impressão dum homem um pouco mais prático do que Tseretelli ou Tchernov. Uma dúzia de Piechekhanov seria um governo composto por vulgares representantes da democracia pequeno-burguesa, em vez da coligação. Quando as massas de São Petersburgo, dirigidas pelo Partido, arvoraram a palavra de ordem: "Abaixo os dez ministros capitalistas - exigiam por isso mesmo que os mencheviques e os narodnikis ocupassem os lugares destes. "Livrem-se dos cadetes e tomem o poder, Senhores democratas burgueses; ponham no governo doze Piechekhanov, que prometemos expulsar-vos o mais "pacificamente" possível, quando chegar a hora. E não tarda muito que soe. Não cabe falar aqui duma linha especial; a minha linha era a que Lenine por varias vezes formulara...

Kislovodsk, 15 de Setembro de 1924.

Neoliberalismo-Gênese, Retórica e Prática (*)

Por Alberto Tosi Rodrigues (**)

A aplicação de políticas de gestão econômica de tipo neoliberal, nos países de capitalismo avançado, significou e tem significado um modelar desmonte do setor público e um deslocamento dos conflitos econômicos para a esfera do mercado. Desde a ascensão de Margareth Thatcher ao governo inglês, no final dos anos setenta, o pacote neoliberal de "ajuste" tem incluído forte contenção monetária, eliminação de constrangimentos e regulamentações sobre o livre fluxo de capital financeiro, aumento das taxas de juros reais, reformas fiscais de caráter anti-redistributivo e aumento deliberado das taxas de desemprego, entre outras medidas.

Mas o neoliberalismo não se compreende, hoje, como mera política econômica "realista", nascida para "enxugar" o Estado, liberar das amarras burocráticas os agentes do mercado e, assim, superar desequilíbrios tópicos de economias com déficits fiscais ou problemas monetários.

A exposição que se segue - no formato de um rápido painel introdutório - pretende contribuir para uma visualização mais multifacetada do conceito de neoliberalismo, a partir de três aspectos:

Em primeiro lugar, vê-lo como resultado de um movimento histórico-social vindo à luz na década de 1970, em resposta à profunda crise no processo de acumulação capitalista então deflagrada; em segundo lugar, como um corpo articulado de proposições econômicas e sociais, ancorado em aspectos específicos da tradição liberal e traduzido em vulgata para embasar uma retórica político-ideológica; e, finalmente, como prática política adotada, sobretudo desde os oitenta, por organismos internacionais de financiamento, sob hegemonia dos países capitalistas centrais, destinada a estabelecer programas de "ajuste estrutural" também nas economias do Terceiro Mundo, na esteira da crise da dívida externa.

1. Crise Econômica e "Reconstrução" Neoliberal.

Nos anos oitenta disseminou-se pelo planeta um modo de gestão econômica do qual o "thatcherismo" e o "reaganismo" foram os mais conhecidos exemplos, mas que atingiu, indistintamente, países como Austrália, Nova Zelândia ou Grécia, e não se limitou às administrações conservadoras (como a inglesa), mas lançou tentáculos também sobre os países governados por democratas-cristãos (Bélgica e Alemanha), social-democratas (Espanha) ou socialistas (França), e, finalmente, chegou à América Latina e ao Terceiro Mundo como um todo.

De outra parte, não se pode esquecer que desde meados dos anos oitenta, a economia e a política mundiais "globalizadas" assistiram à substituição da Guerra Fria - e de toda a concepção de mundo a ela articulada - por uma nova configuração das relações internacionais. Com a débacle do bloco socialista, o anticomunismo deixou de ser a pedra-de-toque da ideologia burguesa ocidental. Os países do Leste vêm sendo, aos poucos, integrados ao novo modo de gestão, com a privatização dos controles estatais, a substituição da provisão pública pelo mercado e a agregação ao mercado mundial.

Como se sabe, "essa revolução transnacional tomou lugar em oposição ao pano de fundo da crise do capitalismo mundial dos anos 70, que exigiu uma reestruturação de longo alcance das condições econômicas, sociais e políticas da acumulação de capital. O neoliberalismo (...) foi o projeto hegemônico que guiou esta reestruturação e conformou esta trajetória".

Para compreendermos o neoliberalismo como um projeto de reestruturação com pretensões hegemônicas no momento presente do capitalismo, no plano econômico mas também no político-ideológico, a primeira providência é tomá-lo historicamente.

1.1. Perspectiva Histórica.

É comum, nos dias que correm, a concepção da "normalidade" econômica como uma situação ideal de mercado. Soam familiares, para os que vivemos na década de noventa do século XX, os discursos que afirmam que sem a livre concorrência não há aumento de produtividade, não há emprego, não há progresso econômico e, logo, não há prosperidade social.

Esses discursos são tão "normalmente" pronunciados que parecem pressupor que os economistas - esses intelectuais responsáveis pela explicação do funcionamento do mundo econômico aos leigos - construíram uma teoria "que 'prova' que, em condições de concorrência, os consumidores que maximizem a utilidade e que façam trocas, bem como os empresários que maximizem os lucros e que façam trocas, automaticamente agirão e interagirão de maneira a maximizar o bem-estar social".

Atente, no entanto, para o fato de que a citação acima não foi retirada do jornal do dia nem do pronunciamento de nenhuma autoridade da área econômica do governo, e sim de um manual de história do pensamento econômico, e não foi escrita para descrever a economia destes tempos de neoliberalismo, mas para resumir os traços gerais da "visão beatífica" e de "felicidade eterna" dos economistas neoclássicos, que pontificavam no século XIX.

Percebe-se, pela coincidência frisada acima, que a cada momento histórico particular, os agentes sociais do processo de acumulação procuram apresentar este processo ao conjunto da sociedade como "normal" e como voltado para o "interesse geral". Esta suposta normalidade encobre tanto a hegemonia da classe capitalista sobre o conjunto da sociedade quanto a disputa por hegemonia entre as frações do capital total, particularmente o capital financeiro e o capital produtivo - frações que se distinguem entre si por sua função no processo de acumulação.

Conflitando continuamente entre si pela direção do processo de acumulação, os agentes sociais que representam as frações do capital total reagem aos obstáculos ciclicamente antepostos à acumulação, de modo a fazê-la retomar seu curso e buscando estabelecer, assim, uma nova normalidade que passe a representar "o 'interesse geral' objetivo conforme delineado pelos parâmetros correntes do modo de produção prevalente e sua ordem de classes".

No XIX, a justificação ideológica neoclássica do capitalismo laissez-faire centrava-se numa teoria da distribuição que retratava o capitalismo, então em sua fase concorrencial, como um ideal de justiça distributiva. Valiam-se, para tanto, do argumento da "mão invisível", formulado por Adam Smith, que retratava o capitalismo como um sistema ideal em termos de racionalidade e eficiência, e, ao mesmo tempo, exibiam uma fé inabalável na natureza automática e auto-regulável do mercado, a partir da qual demonstravam que as funções do Estado deveriam limitar-se a fazer cumprir os contratos e garantir a propriedade privada.

Ao longo do século passado, o argumento em favor do mercado auto-ajustável visou proteger a economia das injunções por vezes discricionárias da aristocracia - que na Europa a princípio ainda dominava o poder político - nas relações econômicas privadas. Foi assim que, por exemplo, "o internacionalismo liberal da burguesia britânica, combinando laissez-faire, uma abordagem evasiva com relação à classe operária doméstica, e um conceito lockeano de Estado (Estado guarda noturno), obviamente favoreceu o capital britânico, mas, por seu sucesso, obteve a qualidade de uma ordem natural das coisas";

Porém, já no final do século, o desenvolvimento de mercados de capitais em escala mundial e os progressos verificados tanto na esfera produtiva quanto na distribuição provocaram uma forte concentração de poder industrial em empresas gigantescas, trustes e cartéis. A partir daí, a concorrência sem qualquer regulamentação passou a tornar-se muito cara e aleatória para estes grandes conglomerados. Além do mais, a concentração de poder decisório em empresas tão grandes agravou a "anarquia" do mercado, uma vez que reduziu significativamente sua flexibilidade e a capacidade de ajuste que pudesse ter.

Resultado: aumentou a instabilidade geral do capitalismo e as depressões cíclicas, que foram agravando-se e amiudando-se ao longo dos oitocentos, culminaram com a Grande Depressão de 1929.

Passou então a ficar mais claro, mesmo para muitos dos economistas neoclássicos, que o mito do mercado auto-ajustável tinha perdido sua eficácia ideológica. A crise geral de superprodução que se abateu sobre a economia mundial nos anos trinta demonstrava que a anarquia desregrada do mercado podia não só ter custos altíssimos como inclusive colocar em risco a própria sobrevivência do capitalismo. De modo que faziam-se necessárias medidas drásticas de regulamentação dos mercados e de reordenação da produção que só poderiam ser postas em prática pelo Estado, dado o processo autófago em que estavam mergulhados os agentes privados.

É neste contexto que vem à luz a obra do economista John Maynard Keynes, que influenciaria o debate econômico e a aplicação de políticas públicas por várias décadas. Já em 1926, Lord Keynes postulou a ruptura com as bases do capitalismo laissez-faire. "Não é verdade que os indivíduos possuem uma 'liberdade natural' prescritiva em suas atividades econômicas", afirmou. "Não constitui uma dedução correta dos princípios da economia que o auto-interesse esclarecido sempre atua a favor do interesse público. Nem é verdade que o auto-interersse seja geralmente esclarecido". Propôs, em contrapartida, que os economistas se dedicassem a distinguir entre a "agenda" e a "não-agenda" do Estado, isto é, procurassem definir em que medida a intervenção governamental seria proveitosa ao capitalismo, em vez de simplesmente desqualificá-la como desnecessária ou perniciosa.

Nos Estados Unidos, a reação à crise dos anos trinta fez-se através de um conjunto de políticas implementadas pelo presidente Roosevelt, o New Deal. Neste momento, os grandes interesses capitalistas, em confluência com o Estado, puderam fazer-se passar, mais uma vez, por "interesse geral". Em contraste com o que Overbeek e Van der Pijls chamaram de "internacionalismo liberal", emergia um período "monopolista de Estado", que, com sua preferência pela mão "visível" em detrimento da "invisível" (no que concerne às relações de trabalho, mercados ou relações internacionais) refletia principalmente a perspectiva do capital produtivo.

Do ponto de vista das relações entre as classes capitalistas e o Estado, há interpretações diversas do significado do New Deal e da fase que ele inaugura. Mencionarei aqui, a título de ilustração, duas posições significativas: a interpretação do "liberalismo corporativo" e a do "funcionalismo político". Pela primeira, o que teria ocorrido é que, em momentos de crise de acumulação, ao contrário de situações rotineiras, os capitalistas tornam-se capazes de agir "como classe". Ou seja, na virada do século e particularmente durante o New Deal tornou-se claro para a vanguarda do grande empresariado que alguma forma de racionalização da economia era necessária. A partir disso, as políticas adotadas, inclusive o forte protecionismo social e o crescimento do Estado-providência no pós-guerra, teriam sido resultado da ação dos líderes corporativos para normalizar as condições econômicas e sociais, de modo a permitir que as grandes corporações obtivessem lucros sobre bases previsíveis. Por outro lado, a segunda interpretação advoga que o Estado é, já por definição, o fator de coesão de uma formação social e, portanto, inerentemente funcional à reprodução das condições de produção do sistema. Assim, ao contrário de alvo de pressões diretas dos interesses das grandes corporações, o Estado só teria sido capaz de promover a racionalização social e econômica naquele momento graças a sua "autonomia relativa" frente às classes, o que lhe permitiu fugir às lógicas setoriais e particularizadas e projetar as condições ótimas para a continuidade da acumulação a longo prazo.

Seja como for, o certo é que a confluência entre os interesses capitalistas e a ação do Estado deu origem, no segundo pós-guerra, a um período marcado por grande desenvolvimento e, naturalmente, por forte presença Estatal no processo econômico e social. Foi o período de ascensão, nos países capitalistas centrais, do Welfare State keynesiano.

Crise de acumulação de caráter semelhante à verificada nos anos trinta só voltaria a ocorrer na década de 1970. E é nesse momento, em resposta à crise de um modelo baseado na regulamentação estatal, que surgiu o neoliberalismo, como contraponto político e ideológico à social-democracia dominante. É nessa perspectiva, pois, que se pode entender o retorno, no momento presente, a um discurso econômico muito semelhante ao que pronunciavam os apologistas do laissez-faire do século passado.

Vejamos mais de perto, agora, a configuração da Grande Crise da economia mundial dos anos setenta e a ascensão do neoliberalismo como um construto ideológico de pretensão hegemônica.

1.2. Crescimento e Crise.

Os países capitalistas avançados da Europa Ocidental e América do Norte desfrutaram, nos vinte anos entre o fim da II Guerra e os meados da década de sessenta, um período de prosperidade sem precedentes. Além de marcada pelo forte e rápido crescimento da produção industrial e pela difusão social dos benefícios, tal expansão econômica foi capaz de gerar a poupança necessária à reprodução dos altos níveis de investimento então verificados.

Inicialmente favorecido pelos altos investimentos na construção civil (dentro do esforço de reconstrução do pós-guerra) e pela expansão do comércio internacional, o boom do período consolidou-se mediante uma política deliberada de pleno emprego de mão-de-obra e um ritmo acelerado de progresso tecnológico.

Nesse sentido, do ponto de vista do modo de alocação do excedente produtivo, aquele momento caracterizou-se pela generalização do que se convencionou chamar de regime de acumulação intensiva ou fordista. "Combinando os princípios de organização científica do trabalho (o taylorismo) com o consumo em massa, este regime tornou possível uma interação positiva entre as transformações das condições de produção e as transformações das condições de consumo".

De outra parte, estabeleceu-se um conjunto de procedimentos e formas institucionais capazes de assegurar a estabilidade do regime de acumulação vigente, isto é, consolidou-se um novo "modo de regulação", geralmente chamado monopolista.

Acompanhando a clássica análise de Andrew Shonfield, podemos arrolar do seguinte modo estas novas características institucionais: (1) "Registra-se uma influência cada vez maior das autoridades públicas sobre a gestão do sistema econômico", via controle do sistema bancário e ampliação da atividade empresarial pública; (2) "A preocupação com o bem-estar social leva ao uso de fundos públicos numa escala crescente, nomeadamente para auxiliar as pessoas que não recebem proventos"; (3) "No setor privado, a violência do mercado foi dominada. A concorrência, embora continue ativa num certo número de áreas, tende a ser cada vez mais regulamentada e controlada"; (4) "Acabou por ser considerado ponto pacífico, tanto pelos governos como pela pessoa média nos países capitalistas ocidentais, que cada ano deve acarretar um aumento visível na renda real per capta da população" e, finalmente; (5) "A atitude característica na administração econômica em grande escala, tanto no governo como no setor privado" passou a ser a ampliação dos horizontes temporais através de um "planejamento nacional de longo alcance"

Esta regulação monopolista permitiu uma transformação profunda da relação salarial, uma modificação dos mecanismos de formação de preços e um tipo de gestão da moeda e do crédito que autorizou um relaxamento sistemático da contenção monetária.

Nos países capitalistas avançados "a confluência da acumulação intensiva e da regulação monopolista criou as bases de um círculo virtuoso pelo qual os ganhos de produtividade e os aumentos de salários reais (diretos e indiretos) se alimentaram reciprocamente".

Mas a difusão, que se deu nessa época, do padrão de acumulação intensiva da economia norte-americana para a Europa e o Japão, isto é, a disseminação do modelo fordista, manteve os países do Terceiro Mundo fora das principais correntes de troca internacionais. A industrialização dos países periféricos (nos casos em que isto ocorreu) deu-se pelo processo de substituição de importações. Sob este formato, as economias do sul também cresceram - calçadas num forte incremento do assalariamento urbano-industrial - a ponto da aceleração do crescimento ter sido maior nos países do Terceiro que nos do Primeiro Mundo, no período.

A partir do final dos anos sessenta, porém, adveio a crise, nos países centrais, da combinação então vigente entre uma acumulação intensiva e uma regulação monopolista, crise esta acarretada por processos sobre os quais não nos estenderemos aqui. "O círculo virtuoso" (ganhos de produtividade alimentando aumentos reais de salário e vice-versa), então, "cede lugar ao círculo vicioso estagflacionista que se instala de modo duradouro na maior parte dos países desenvolvidos". No Terceiro Mundo, ao contrário, "a industrialização pôde continuar a se desenvolver justamente porque ela não se inseriu nos esquemas de acumulação fordista, cujo desmoronamento esteve na base da crise dos países centrais. No sentido forte, gramsciano do termo, a crise apareceu como própria dos países capitalistas avançados" .

Na América Latina, o aprofundamento do desenvolvimento capitalista foi garantido pela emergência de um novo tipo de Estado, caracterizado por Guillermo O'Donnell como burocrático-autoritário, que implantou-se na região entre meados dos anos sessenta e meados dos setenta com o objetivo de conter a ativação dos setores populares e a instabilidade política daí decorrente e, em seguida, assegurar previsibilidade aos grandes investimentos e possibilitar crescimento econômico mediante, de um lado, a entrada massiva de capital internacional e, de outro, a repressão política.

Nas décadas de 1960 e 70, portanto, configurou-se um quadro de estagflação ao norte (com sensível diminuição do crescimento, desindustrialização relativa e aceleração geral do movimento dos preços - resultado da crise do padrão fordista) e o que Ominami chamou de uma busca inflacionária do crescimento, ao sul (onde a dinâmica inflacionária, mais forte que nos países centrais, alimentou-se do crescimento industrial estimulado por uma forte presença do Estado, e no caso latino-americano, sob regime autoritário).

1.3. Crise e "Reconstrução".

Em suma, conforme a análise de Carlos Ominami, " diferentemente da Grande Depressão dos anos 30, o desencadeamento da crise do final dos anos 60 não colocou em movimento mecanismos de propagação automática para os países em desenvolvimento da recessão nos países desenvolvidos (...). O crescimento do Terceiro Mundo conheceu antes uma aceleração, ao longo do período 1968-80". Porém, a partir dos anos oitenta, o panorama da crise modifica-se radicalmente. "A virada da década coincide com uma brusca deterioração da situação econômica mundial. Após todo um período fora da crise, os países em desenvolvimento mergulham por sua vez em processos recessivos de conseqüências sociais por vezes dramáticas. A recessão tende portanto a se generalizar para o conjunto da economia mundial. À crise já antiga do norte vêm juntar-se as crises do sul. Esta convergência constitui um traço característico do período atual".

E eis aqui o ponto fundamental: nos anos 80, o endurecimento das políticas de austeridade (monetária, fiscal e tributária) colocadas em prática nos países desenvolvidos e, mais particularmente, a nova política adotada pela administração Ronald Reagan nos Estados Unidos, provocaram uma desordem radical na cena internacional. Sua conseqüência para a economia mundial, e em especial para o Terceiro Mundo, foi a criação das condições para o desencadeamento de uma forte recessão em escala internacional, que tomaria a forma de uma crise deflacionária (e não mais inflacionária), com um impacto extremamente negativo sobre o nível da liquidez internacional. Trocando em miúdos, o dinheiro barato obtido pelos países em desenvolvimento nas décadas precedentes (oriundo em boa medida dos "petrodólares" liberados a partir do primeiro choque do petróleo, em 1973), tornou-se, subitamente, caríssimo, dada a explosão das taxas de juros no mercado internacional. Nos oitenta, ainda acompanhando o raciocínio de Ominami, "o monetarismo central vai solapar as bases - certamente frágeis - da economia do endividamento internacional sobre as quais repousa a regulação mundial privada. A emergência de uma dupla contração, comercial e financeira, que se difundira ao conjunto da economia mundial, é a conseqüência direta. (...) Essa regressão no plano das trocas comerciais está estreitamente ligada à deterioração da situação financeira internacional: uma e outra interagem reciprocamente".

É assim que, nos primeiros anos da década de 1980, a deterioração generalizada do comércio exterior atinge em cheio os países em desenvolvimento: Os exportadores de petróleo e os menos avançados foram os mais atingidos, mas a queda das importações foi maior em certos países exportadores de produtos manufaturados (como Brasil, México e Coréia), em razão da acuidade do problema do endividamento. Aliás, a diminuição radical da capacidade de importar das economias do sul constituiu-se na síntese do complexo conjunto de fatores através dos quais se operou a difusão internacional da crise.

No Terceiro Mundo, em suma, "a sucessão de ciclos curtos de altas e baixas (de crescimento econômico) em torno de uma média que permanece elevada é substituída por uma queda livre cujas origens remontam a 1977. Mas é a partir de 1979 que essa desaceleração ganha proporções sensíveis: pela primeira vez depois de vários anos, a taxa global de crescimento do Terceiro Mundo cai abaixo dos 4%. Esta tendência se agravaria nos anos seguintes e chegaria a seu ponto mais baixo em 1982".

Portanto, um novo padrão de regulação estabelece-se, a partir da ofensiva das economias centrais, como resposta à crise que levou o padrão anterior, fordista e monopolista, ao colapso. A crise mundial dos anos setenta "foi uma crise fundamental de 'normalidade' que afetou todos os aspectos da ordem do pós-guerra: relações sociais de produção, a composição do bloco histórico e seu conceito de controle, o papel do Estado, e a ordem internacional". Estes elementos passaram por um processo de reconstrução. Foi necessário um meticuloso trabalho político e ideológico para desarticular formações antigas e reordenar seus elementos em novos termos, visando o restabelecimento da normalidade do processo de acumulação. O novo padrão de gestão econômica e de discurso político-ideológico "que emerge desse esforço construtivo para lidar com a crise orgânica dos anos 70 chamamos neoliberalismo".

2. A Retórica Neoliberal.

Depreende-se do exposto acima que o neoliberalismo significa a formulação de claros interesses de fração em termos de interesses "nacionais" ou "gerais". Nesse sentido, para que seja possível formular "em termos de" interesse geral um interesse particular, é necessária a mediação de um sistema simbólico adequado, que codifique satisfatoriamente uma concepção de mundo, assim como cumpra as funções de meio de comunicação e de instrumento de dominação.

Vejamos, abaixo, primeiramente os principais elementos constitutivos desse quadro discursivo e, em seguida, o contexto de sua gênese.

2.1. Os Elementos do Discurso.

Para lograr a constituição de uma lógica argumentativa eficaz, do ponto de vista da justificação político-ideológica das práticas adotadas, o neoliberalismo lançou mão de um arcabouço caracterizado pela fusão, às vezes difícil e contraditória, de elementos liberais e conservadores. "Em seu aspecto liberal, o neoliberalismo é a política construída a partir do indivíduo, da liberdade de escolha, da sociedade de mercado, do laissez-faire e do Estado mínimo. Seu componente neoconservador se estabelece no governo forte, no autoritarismo social, na sociedade disciplinada, na hierarquia e subordinação, e na nação".

O neoliberalismo, assim, pode ser também concebido como uma retórica específica, um instrumento de ordem gnosiológica. Tratar-se-ia de uma espécie de "gramática" que pretende organizar a representação da sociedade em seu conjunto. Para Bruno Théret, "a coerência lógica do neoliberalismo teórico, necessária a seu poder de persuasão, é assegurada pela enumeração de três princípios que, na versão mais radical da doutrina, são: a liberdade até o limite de seu abuso; a desigualdade até o limite do tolerável; a flexibilidade até os limites da insegurança. É o conjunto articulado desses três elementos que, no plano doutrinário, garante uma plena eficiência econômica do mercado, levando a um crescimento ótimo da produção material e ao progresso social".

O raciocínio, que como já assinalamos retoma alguns dos argumentos básicos da justificação ideológica do capitalismo laissez-faire do XIX denunciados por Keynes como falaciosos, é relativamente simples. O princípio fundador baseia-se no direito natural, e está obviamente calcado na idéia de liberdade. Segue-se que a estrutura social resultante da interação de homens livres por natureza é necessariamente desigual. Daí que a característica dos indivíduos é a flexibilidade. O conjunto resulta na idéia de um mercado ideal, que permite a alocação ótima de recursos escassos. Tal mercado favorece o crescimento econômico e este, por sua vez, autoriza, automaticamente, um progresso social geral. E esse progresso permitiria, a longo prazo, a ampliação da esfera da liberdade por meio de uma transformação cultural da natureza. Esta possibilidade, ao final, levaria a uma redução da propensão da natureza de só prover recursos escassos e, portanto, a uma redução das desigualdades sociais.

Deste ponto de vista, por definição, o Estado é encarado como o principal limite à liberdade individual, porque tende a reduzir as desigualdades e, assim, é fonte de rigidez social, agindo contra a flexibilidade inerente aos indivíduos livres. De modo que o Estado é, inelutavelmente, um perturbador da ordem de mercado e, portanto, um redutor dos estímulos ao trabalho e à poupança e, em conseqüência, tende a frear o crescimento e a constituir-se, por fim, em fator de regressão social.

Uma formulação assim, como argumenta Théret, só pode ser considerada uma retórica reacionária, no sentido específico de que remete a uma filosofia liberal pré-democrática (em sentido moderno), fundada tanto no direito natural quanto no darwinismo social. A retomada desses princípios pelo neoliberalismo constitui-se, assim, numa reação ao igualitarismo democrático e, pode-se acrescentar, ao próprio Estado liberal-democrático moderno e não apenas à social-democracia, seu adversário mais direto.

2.2.A Gênese do Discurso.

A fusão entre elementos liberais e conservadores produziu-se no processo mesmo de constituição do discurso neoliberal, processo este premido, de um lado, pela necessidade de fundamentação teórica na "ciência econômica" e, de outro, pelas demandas de eficácia política. O ponto de partida da constituição do discurso, nesse quadro, deve ser buscado na própria corporação dos economistas.

Na maior parte dos países desenvolvidos, ao contrário do que ocorre no Brasil, os economistas, enquanto tais, têm pouca influência política direta. O que é exportado do campo dos economistas para a esfera das decisões políticas é essencialmente um "clima" e uma retórica (entendida como modo de raciocínio e de argumentação). E isso inclui uma série de "caixas pretas", isto é, fatos dados como certos porque reconhecidos pela opinião comum do campo dos economistas e por isso colocados fora da discussão.

Assim, ainda segundo a argumentação de Théret, o neoliberalismo - enquanto instrumento de conhecimento da realidade econômica e política e enquanto "construção do mundo"- é um produto "da indústria dos economistas", ou seja, "é produzido pelo grupo particular e auto-referido dos economistas" .

Nesse sentido - acompanhando o relato deste autor - a década de 1970, nos Estados Unidos, foi marcada pela competição, no seio do campo dos economistas, entre monetaristas e estruturalistas, nas Universidades e centros de excelência. Este período assistiu ao embate entre jovens monetaristas e antigos intelectuais de corte keynesiano, em busca de postos e cargos mais elevados nas instituições. Estes jovens economistas monetaristas, assim como aqueles ligados à escola da "Public Choice" (como Niskanen, Buchanan ou Tullock) reforçaram o discurso até então relativamente isolado de Hayek e Friedmann, ambos da Universidade de Chicago. Foi com base em Chicago, neste momento, que viabilizou-se o que ficou conhecido como "contra-revolução monetarista", em resposta à "revolução keynesiana" dos anos trinta.

O objetivo prático dos defensores desta perspectiva, naquela conjuntura, era desvalorizar as diversas formas de intervenção pública na gestão econômica. Mas, paralelamente a esse movimento, até então de caráter acadêmico, setores da imprensa, como o Wall Street Journal, por exemplo, passaram a mobilizar o senso comum (tendo como alvo "os contribuintes" ou membros da administração pública) com um discurso certamente menos elaborado, mas calcado numa retórica que procurava evidenciar os efeitos perversos das políticas fiscais implementadas pelo Estado.

Tal discurso chega à Europa no final dos anos 70. É a fase em que a produção neoliberal se internacionaliza, com base na adaptação do discurso às realidades nacionais. "Assim, no continente europeu, no fim dos anos 70, um punhado de artigos com pretensão acadêmica avaliza uma pilha de obras de vulgarização, que suBirdetem a forte pressão, dada a eficácia política do novo discurso, o coração sério da profissão de economista, a priori porém cientificamente hostil às idéias simplistas defendidas".

2.3. Retórica e Eficácia..

De certo modo, essa eficácia política da retórica neoliberal oferece aos economistas a possibilidade de valorização de seu discurso profissional. Assim, num momento de baixa da aceitação pública da pretensão de cientificidade do discurso econômico, o neoliberalismo aparece como um achado, que revigorava o raio de ação dos economistas.

Por outro lado, naturalmente, o sucesso ideológico não se limitou à corporação dos economistas. A nova ética neoliberal provou possuir um forte apelo para diversas camadas. Seu neoconservadorismo tem municiado a burguesia neoliberal com um discurso político calcado no conservadorismo moral, na xenofobia, em lemas como "lei-e-ordem", família, etc. Novos estratos sociais, como as "novas classes médias", foram atraídos pela lógica da mobilidade social ascendente, e antigas camadas, como a própria classe trabalhadora, têm sido atraídas pela ideologia da família e da nação, em especial nos países centrais. No caso da classe trabalhadora, este impacto é particularmente sensível, uma vez que o tratamento reacionário dos problemas sociais pelo neoliberalismo cria dificuldades para que a própria esquerda, em muitos casos também ela convertida à retórica neoliberal, articule um discurso social compatível com o neoliberalismo, conservando assim sua antiga clientela eleitoral.

A mistura precisa de elementos (ideologia do livre mercado e neoconservadorismo) varia de país para país, dependendo da conjuntura política e da situação particular do país na ordem mundial, mas é certo que essas mudanças de orientação ideológica têm causado forte impacto no terreno político. Como apontam Overbeek e Van der Pijls, "a derrota e a desorientação da social-democracia em toda Europa parece terminal. Dahrendorf está certo ao interpretar a vitória neoliberal como o 'fim do século social-democrata'".

Não se trata, porém, de vitória consolidada. Longe disso, a ascensão do neoliberalismo em sua pretensão hegemônica, calcado num discurso estruturado e buscando enraizamento social mais sólido, ainda busca transpor importantes obstáculos. A consolidação do projeto neoliberal - "que envolveu a disciplinarização do trabalho através do estabelecimento de uma nova estrutura de relações de trabalho centro-periferia, subordinando a grade produtiva global em benefício de critérios estabelecidos pelo capital financeiro, e confrontando o Terceiro Mundo e o bloco soviético com uma nova guerra fria - não está realizada até aqui".

Nesse sentido, a disputa por hegemonia no terreno político-econômico dá-se, hoje, essencialmente, em torno das políticas de ajuste em curso.

3. A Prática Neoliberal: as Políticas de Estabilização e Ajuste

Após a crise dos anos setenta, como dissemos, os países centrais adotaram medidas de ajuste econômico cujos reflexos geraram fortes constrangimentos para a economia mundial. A partir do início dos oitenta, o Terceiro Mundo entrou na crise, trazendo consigo o dramático problema das dívidas externas. Faremos nesta seção algumas considerações a respeito do contexto da crise do endividamento, do receituário desenvolvido pelas agências financiadoras internacionais para os ajustes das economias periféricas e do impacto destas políticas sobre os Estados nacionais, enfocando particularmente a América Latina.

3.1. A Crise da Dívida.

A chamada "crise da dívida" desencadeia-se com a forte crise financeira experimentada pelo México em 1982, que levou aquele país à decretação da moratória de sua dívida externa, ocasionando um abrupto corte na entrada de novos capitais externos e desatando uma crise econômica e financeira de grandes proporções entre os países subdesenvolvidos, em especial os da América Latina.. Em razão deste evento, passa a ocorrer uma forte politização da emissão de créditos internacionais.

Dito de outro modo, a partir de então, ante à impossibilidade de financiar suas dívidas, esses países recorreram ao Banco Mundial (Bird) e ao Fundo Monetário Internacional (FMI) e estes organismos, por sua vez, condicionaram o crédito a ajustes estruturais, isto é, "uma série de reformas econômicas, políticas e institucionais, de marcado corte neoliberal, nos países devedores (...)".

Esta renegociação "politizada" das dívidas externas dos países do Terceiro Mundo tem sido o mecanismo por excelência de administração da crise e tem observado, salvo mudanças marginais, uma certa regularidade de procedimentos. Tal regularidade se expressa em três princípios fundamentais de ação dos organismos internacionais: (1) as dívidas devem ser pagas integralmente; (2) os encargos devem recair exclusivamente sobre os devedores; e (3) a negociação deve ser feita caso-a-caso.

Não que com isso os processos de negociação tenham ocorrido sem disputas. Os países devedores têm podido contar com certos recursos que lhes permitem tratamentos diferenciados. Em primeiro lugar, os maiores devedores têm renegociado suas dívidas em melhores condições e foram também os pioneiros em acordos de renegociação envolvendo políticas internas heterodoxas, como a Argentina do Plano Austral. Também o Brasil foi pioneiro, após a crise mexicana de 1982, na suspensão do pagamento da dívida externa, em 1987, seguido por vários outros pequenos devedores. Em segundo lugar, mesmo pequenos devedores puderam obter vantagens adicionais na renegociação dada sua posição estratégica, seja por motivo de alguma inconveniente instabilidade política interna, seja por pertencer à área de influência de alguma potência econômica (já que há zonas de influência de credores sobre devedores: Alemanha com relação à Turquia e Polônia, Estados Unidos com relação ao México, França com relação à África francesa, etc). Em terceiro lugar, a posse de algum recurso natural estratégico - como a posse de petróleo pela Venezuela, por exemplo - pode tornar o devedor menos suscetível às idiossincrasias dos organismos internacionais. Mas a estratégia de cooperação entre os devedores tem se mostrado ineficiente, uma vez que além da oposição dos credores, ela é pouco interessante para os grandes devedores, que preferem a negociação caso-a-caso com vantagens.

Apesar de certas resistências, porém, é óbvia a capacidade dos organismos internacionais de crédito de impor aos devedores as políticas de ajuste solicitadas como condição para os avais.

No debate "politizado" em torno das renegociações, portanto, esses organismos internacionais atuam objetivamente como agências do capital financeiro transnacional, que derivam seu receituário de estabilização e ajuste de uma visão tipicamente neoliberal da crise do mundo subdesenvolvido.

Nesse sentido, o diagnóstico neoliberal da crise na América Latina é de que ela se deve fundamentalmente à recessão internacional dos anos oitenta, sobretudo pela combinação entre uma acentuada queda de preços das exportações e de grandes altas nas taxas de juros reais no mercado internacional. E isso tudo agravado pela forte diminuição dos fluxos de capitais, isto é, de financiamento externo privado, outrora abundante, para esses países. Este diagnóstico se reforça em especial pelo fato de que países de outras regiões do globo, com problemas muito semelhantes, obtiveram recuperação econômica bem maior, e também pela deterioração de longo prazo da situação econômica relativa dos países latino-americanos. Tal deterioração é constatada por uma fuga de capitais no período, em especial devido à perda de confiança nas gestões econômicas vigentes. Completando essa visão, aponta-se invariavelmente o peso excessivo e até mesmo "sufocante" do papel do Estado na economia e, em decorrência imediata, a debilidade do setor privado. "Deste ponto de vista, o desafio econômico que devem enfrentar os países da região é encontrar alguma forma eficaz de retomar o crescimento auto-sustentado que permita garantir o emprego produtivo para uma população em crescimento e restabelecer a confiança dos mercados financeiros externos pela via do serviço 'contínuo e oportuno' da dívida".

3.2. O Receituário Neoliberal.

A partir deste diagnóstico, a política neoliberal de estabilização e ajuste estrutural das economias do Terceiro Mundo, internacionalmente imposta como condição sine qua non para a renegociação das dívidas externas, define três aspectos básicos: (1) as áreas estratégicas de ação; (2) as políticas prioritárias a serem adotadas; e (3) as etapas do processo de ajuste.

(1) Em primeiro lugar, o receituário neoliberal adotado pelos organismos internacionais define quatro áreas estratégicas de ação: a) a orientação da política econômica para o exterior, ou seja, a ênfase nas exportações e substituição de importações, evitando excesso de protecionismo e mantendo o câmbio em níveis competitivos; b) o aumento da poupança e do investimento produtivo sem estímulo exagerado ao consumo, e estímulos à entrada de capital externo; c) a reforma do papel do Estado na economia, especialmente através de uma desregulamentação dos mercados e de uma política sistemática de privatizações; e d) o "apoio" internacional para esta estratégia, em especial dos EUA e países industrializados, apoio este que de resto só se vislumbra na iminência de colapsos, como na recente crise mexicana de 1994.

Na visão do Bird e do FMI, então, aparece como necessidade mais urgente tratar da combinação dos fortes desequilíbrios internos dos países devedores, ou seja, inflação e déficit da balança de pagamentos, que impedem o crescimento de longo prazo. Quanto mais prolongados tenham sido estes desequilíbrios, prevêem, mais "custoso" será o ajuste. A chave do ajuste, para estes organismos, "reside em encontrar a combinação adequada e o manejo equilibrado dos instrumentos de política monetária, fiscal e cambial que, para um nível dado de financiamento externo, logrem cumprir com os objetivos da estabilização, apoiem as transformações estruturais e imponham menos custos em termos de crescimento no curto prazo". Toda a ênfase, em suma, é colocada na questão da resolução do problema do déficit fiscal do Estado.

(2) Define-se, a partir desse enfoque, um conjunto de políticas que requer atenção prioritária: a) aumento da poupança pública via redução de gastos e incremento da receita; b) aumento da poupança privada (que requer instituições financeiras internas fortalecidas e manutenção de uma política econômica estável); c) maior eficiência econômica e aumento dos investimentos privados (o que requer uma desregulamentação da atividade produtiva, em especial eliminando controles de preços e desregulamentando o mercado de trabalho); d) "melhor" destinação do investimento público; e) aumento da oferta de bens de exportação.

(3) Não obstante um amplo consenso em torno deste programa de ajuste, trava-se um debate interno ao campo neoliberal a respeito das questões de implementação desta agenda, em especial, para estabelecer-se a seqüência mais desejável das medidas de política econômica voltadas para a obtenção da estabilização e das voltadas para o ajuste estrutural das economias. Discute-se também a ordem apropriada para eliminar as distorções dos mercados inicialmente regulados e a velocidade com que a abertura comercial deveria se dar (se de uma vez ou num prazo de cinco a dez anos, por exemplo) e, ainda, se deveriam ser eliminados os controles de preços de uma vez ou gradualmente. Neste debate, o Bird aponta três etapas para o processo: a) obter uma estabilidade macroeconômica mínima, reduzindo os níveis de inflação e as taxas de juros reais; b) uma vez isso obtido, a aplicação de profundas reformas estruturais visando implementar competitividade interna e externa dos mercados de bens, de insumos e financeiro, juntamente com uma racionalização do sistema de regulamentação e reformas institucionais que promovam o aumento da poupança pública; e c) a consolidação das reformas, com a recuperação sustentada dos níveis de investimento.

A crise da dívida, porém, apesar da aplicação desse receituário, não tem sido revertida. Muito pelo contrário, o conhecido resultado tem sido o de aumentar os desequilíbrios internos dos países devedores. "A renda per capita na América Latina se manteve, durante toda a década de 1980, muito abaixo dos níveis alcançados no final dos anos setenta e esta tendência continua na maioria dos países, com impactos sociais regressivos e agudos conflitos políticos, de imprevisíveis conseqüências para as democracias recém instauradas. Ante este panorama desolador, a década de 1980 tem sido caracterizada como uma década perdida no desenvolvimento latino-americano".

3.3. Os Ajustes Domésticos.

Do dito acima, depreende-se facilmente que as políticas internacional e doméstica de ajuste estão intimamente ligadas. O receituário neoliberal, porém, é um conjunto de políticas uniforme imposto a realidades nacionais as mais díspares e, por mais que sejam aceitas acriticamente pelos governos, tais políticas encontram necessariamente um conjunto importante de particularidades no processo de implementação.

Longe de mapear a contento a complexa questão dos conflitos políticos internos aos Estados nacionais em torno da implantação dos programas de ajuste estrutural, o que se pode fazer aqui é apenas indicar alguns dos problemas atinentes a esses processos.

Nesse sentido, é preciso atentar para alguns aspectos básicos, como o poder dos diferentes grupos de interesse; a natureza das instituições políticas, inclusive a burocracia; e a influência dos cálculos políticos de curto prazo, inclusive a agenda eleitoral e as transições de regime. É na confluência desse quadro político interno com as pressões dos organismos internacionais de financiamento que se situa o terreno sobre o qual o neoliberalismo busca expandir-se e firmar definitivamente sua hegemonia na presente fase do capitalismo.

Do ponto de vista geral da relação Estado-sociedade, as exigências dos diversos setores organizados são bastante diferenciadas.

Para o empresariado, o essencial nos momentos de ajuste é sempre a exigência de um entorno político o mais confiável e previsível que o governo possa oferecer, com um mínimo de ingerência regulatória abrupta sobre a atividade econômica, facilitando assim o planejamento e a realização de investimentos. Na ausência dessas condições, o empresariado pode oferecer resistências aos programas de estabilização. No caso do Chile, por exemplo, primeiro país latino-americano a implementar um "ajuste" neoliberal, realizado a partir de meados dos anos setenta, a ditadura Pinochet ofereceu condições ideais ao empresariado - especialmente após a superação da crise de 1982 - em termos de previsibilidade política e de não exposição da atividade empresarial privada a discussões públicas com outros setores sociais, dado o fechamento do regime. Já no Brasil, os diversos choques heterodoxos da segunda metade dos anos oitenta e mesmo um programa de perfil mais nitidamente neoliberal como o de Fernando Collor em 1990, acabaram por ser boicotados por um empresariado resistente a ingerências que vinham interromper abruptamente uma lógica de acumulação típica de conjunturas fortemente inflacionárias, montada na rapinagem financeira de curto prazo. Seja como for, é mais comum que o grande empresariado - com maior poder de barganha e menos sensível aos efeitos de políticas recessivas de curto prazo - identifique-se diretamente com os interesses de longo prazo do capital financeiro transnacional, enquanto que o pequeno empresariado esteja mais preocupado com a situação do mercado interno a curto prazo e, portanto, menos satisfeito com a implementação de políticas monetaristas ortodoxas.

Fica claro, nesse ponto, que há uma relação direta entre a existência de regimes autoritários ou democráticos e os programas de estabilização. Com governos "fortes" existem maiores facilidades para os programas de ajuste, especialmente no que tange à imposição dos custos dos programas a determinados setores sociais. De sorte que, conforme já observado, o neoliberalismo encontra terreno fértil no neoconservadorismo político e nos regimes de exceção. No espectro democrático, por outro lado, há maiores facilidades em democracias com padrões estáveis de representação dos grupos de interesse (democracias institucionalizadas) do que em democracias plebiscitárias, porque nas primeiras as elites econômicas têm maior peso na arena política e nas segundas as questões econômicas tendem a ser "politizadas".

Na intersecção entre agenda política e agenda de estabilização, por sua vez, coloca-se uma das questões mais relevantes desse processo. No que diz respeito a transições de regime, nota-se que os novos autoritarismos tendem a políticas de disciplinarização econômica (como ocorreu em todos os países latino-americanos após os golpes militares), uma vez que na raiz mesma dos golpes, como demonstrou Guillermo O'Donnell, encontravam-se crises econômicas de profundidades variadas; enquanto que as novas democracias tendem a planos de estabilização expansionistas (como o Brasil do Plano Cruzado e a Argentina do Plano Austral). Já no que diz respeito a transições eleitorais sob regime democrático, o que geralmente ocorre é a deflagração dos pacotes de ajuste imediatamente após as eleições e a tomada de posse, momento em que os executivos controlam um maior estoque de recursos políticos e de legitimidade; ou, por outra, uma tentativa de converter quedas abruptas de inflação em dividendos eleitorais, como ocorrido no Brasil com o chamado "estelionato eleitoral" do PMDB em 1986, ou com a cronometrada coincidência entre o calendário do Plano Real e as eleições presidenciais de 1994.

Quanto aos trabalhadores, é óbvio que oferecerão maior resistência aos processos de estabilização neoliberal quanto maior seu nível de organização corporativa e política e quanto maiores forem os mencionados "custos sociais" impostos, seja em termos de perdas salariais e desemprego, seja em termos de desmonte do sistema securitário e previdenciário público ou de outras garantias e regulamentações estatais do processo de trabalho.

De outra parte, nos países em que os partidos têm base rural forte (ou, como no Brasil, as bancadas parlamentares dos proprietários de terras perpassam a organização partidária formal, constituindo um grupo de interesse autônomo com representação parlamentar própria) ou, em outro registro, onde os camponeses são suscetíveis de mobilização revolucionária, as elites estatais geralmente são forçadas a observar os interesses dos proprietários de terras nos programas de ajuste.

O "sucesso" dos programas requer, além do mais, a existência de uma burocracia estabilizada e profissionalizada que atenda às necessidades administrativas das políticas de ajuste, levando-se aí em conta também o padrão de recrutamento da burocracia. E, dentro dessa burocracia, deve-se destacar um segmento especial: os tecnocratas. Ponto de intersecção entre o campo intelectual (em especial o dos economistas) e o político-administrativo, a importância da tecnocracia para os programas de ajuste e para a própria expansão ideológica do neoliberalismo está tanto na circulação das trajetórias pessoais de intelectuais a tecnocratas quanto na "circulação de idéias" neoliberais de um campo a outro, circulação cujos contornos obedecem tanto à lógica acadêmica (debate entre keynesianismo e monetarismo pela hegemonia no campo dos economistas) quanto à lógica da competição político-eleitoral, que pode levar tecnocratas de matizes diversos ao aparelho de Estado. O cruzamento entre perfil da tecnocracia e regime político também é uma interface importante. No Chile, os chamados Chicago Boys, jovens economistas formados pela escola de Chicago, substituíram os intelectuais engajados do período de Allende nos postos do aparelho de Estado e puderam implantar, sob a ditadura Pinochet, um shock monetarista já em 1975. Mais recentemente, no Chile como no Brasil, a afirmação da democracia competitiva trouxe consigo a figura do técnico-político, intelectual de formação acadêmica não burocrata que disputa espaço no campo político-eleitoral.

Finalmente, no que diz respeito à relação entre a expansão do neoliberalismo e a disputa político-eleitoral, é possível detectar-se, em determinadas situações, uma certa indiferenciação entre esquerda e direita. Mas essa indistinção, pelo que se pode perceber, não denota unanimidade na gestão estatal ou na competição política, e sim evidencia uma nova fratura no interior das elites políticas, perpassando direita e esquerda. No seio de cada Estado nacional, a arena do conflito - pautado pela pretensão hegemônica do neoliberalismo - tem-se caracterizado pela divisão do sistema político e administrativo entre, de um lado, os agentes voltados para o tratamento das questões macroeconômicas do ponto de vista da gestão financeira em seus constrangimentos e implicações internacionais e, de outro lado, os agentes que permanecem especializados na gestão social e que se vêem cada vez mais restritos ao nível local. "Entre esses dois grupos, o diálogo, que sempre foi difícil, rompeu-se amplamente e assim permanecerá sem dúvida enquanto permanecerem as regras neoliberais de gestão do Estado".

Considerando-se os aspectos expostos acima, entre outros, é que se pode compreender as diferenças no timing da implantação e no conteúdo das agendas de ajuste neoliberal em curso em diferentes países da América Latina.

4. Considerações Finais.

Conforme o exposto acima, a crise de dimensões mundiais por que passou o capitalismo na década de 1970 exigiu uma radical reestruturação nos padrões de acumulação fordista e de regulação monopolista até então em vigor. O novo construto político-ideológico e de gestão econômica que emergiu com este processo de reestruturação foi o neoliberalismo, que, do ponto de vista da disputa entre as frações do capital total, visou e visa reorientar a economia, a política e a sociedade capitalista para uma nova "normalidade", afeita à perspectiva do capital financeiro transnacional. Este construto ideológico materializa-se a partir de um quadro teórico extraído da ciência econômica e de sua vulgarização através de "formadores de opinião", até conectar-se com as orientações de governo e com a prática de gestão administrativa dos quadros das tecnocracias estatais. De outra parte, como a crise dos setenta originou-se nos países de capitalismo avançado (esgotamento do modelo fordista), não disseminou-se de início aos países em desenvolvimento (que cresciam via industrialização por substituição de importações). Mais ou menos na virada da década de oitenta, porém, devido às políticas de ajuste dos países centrais e à conseqüente explosão das taxas de juros no mercado internacional, os países em desenvolvimento começam a sofrer os efeitos da crise mundial, agravada de modo especial pelo endividamento externo. É a partir da necessidade de equacionamento destas dívidas e de correção dos desequilíbrios internos por elas provocados - bem como, por outro lado, a partir da recente absorção dos novos mercados representados pelos antigos países socialistas - que se desencadeia o processo de implantação dos programas neoliberais nos países subdesenvolvidos, processo esse que tende a generalizar mundialmente o neoliberalismo como construto ideológico hegemônico. Em cada país, porém, tal expansão depara-se com o desafio de interagir com diversos fatores de ordem social e política, que determinam diferenças de caráter, de grau, e de velocidade na absorção do novo modelo, bem como conformam os contornos de novas arenas de disputa.

Bruno Théret observou, em seu trabalho citado, que há um certo consenso, na literatura disponível, sobre o fato de que, diferentemente do que foi o keynesianismo, o neoliberalismo não logrou ainda a adesão em massa a seus valores, sobretudo em vista dos processos de desmantelamento do Estado-providência, permanecendo ainda disputado, no plano político, no seio do eleitorado. Argumentou ainda que, como o neoliberalismo postula a separação entre o econômico e o político e, mais além, dentro do próprio econômico a separação entre o financeiro e o produtivo, isto implica, no interior do Estado, numa separação, como já se assinalou acima, entre os gestores da área macroeconômica e os da área social. "Uns raciocinam em termos de eficiência econômica, de moeda forte e de competitividade, de excelência individual e de trunfos mundiais; os outros põem o acento nos riscos de dualização da sociedade, na importância da solidariedade e da inserção do indivíduo na comunidade, na necessária revitalização do tecido local. Os primeiros podem ser de esquerda ou de direita, os últimos também. E se a cor política importa pouco nesse domínio, em compensação os primeiros dominam claramente os últimos".

O certo é que a disputa pela consolidação da hegemonia neoliberal situa-se, hoje, tanto no plano nacional quanto no internacional. No front internacional, os organismos multilaterais de financiamento interpelam os países do Terceiro Mundo, ou os egressos do socialismo, a partir de um receituário voltado para a reincorporação, sob novos moldes, desses países ao mercado mundial. No front nacional travam-se, no desenrolar dos programas de estabilização e ajuste, os conflitos entre, de um lado, os agentes sociais articulados à lógica e aos interesses do capital financeiro transnacional (como o grande empresariado e a tecnocracia neoliberal) e, de outro, os agentes vinculados à gestão das políticas sociais ou nela interessados (como setores organizados dos trabalhadores e eventualmente pequenos empresários).

Na fase econômica presente, o neoliberalismo, enquanto construto ideológico, busca firmar-se como referência política hegemônica.

Na vivência cotidiana dos anos noventa, em cada página de jornal, em cada discurso presidencial, em cada greve, em cada estatística sobre indicadores sociais, o neoliberalismo aparece como divisor de águas, como parâmetro central do conflito político contemporâneo.

Campinas, maio-junho de 1995.