segunda-feira, 22 de novembro de 2010

UTILITARISMO E JUSTIÇA -John Stuart Mill


Somos continuamente informados de que a utilidade é um padrão incerto que cada pessoa interpreta de forma diferente, e que não há segurança a não ser nos ditames não sujeitos a erro, imutáveis e indeléveis da justiça, que contêm a prova em si mesmos, e são independentes das flutuações da opinião. Supor-se-ia, a partir daqui, que em questões de justiça não poderia haver controvérsia; que, se a tomássemos como regra, a sua aplicação a qualquer caso em concreto nos deixaria com tão pouca dúvida como uma demonstração matemática. Isto está tão longe da realidade, que existe tanta divergência de opiniões e tanta e tão feroz discussão sobre o que é justo como sobre o que é útil para a sociedade. Não só diferentes nações e indivíduos têm noções diferentes sobre o que é a justiça como, na mente de um mesmo indivíduo, a justiça não é uma só regra, princípio ou máxima, mas muitas, que nem sempre coincidem nos seus ditames, e ao escolher entre elas ele é guiado ou por um padrão externo ou pelas suas preferências pessoais.
Por exemplo, há quem afirme ser injusto punir uma pessoa para servir de exemplo a outras; que a punição só é justa quando visa o bem da própria pessoa castigada. Outros defendem o exato oposto, afirmando que punir para seu próprio benefício pessoas que atingiram a idade do discernimento é despotismo e injustiça, pois se o que está em questão é apenas o seu próprio bem, ninguém tem o direito de lhe controlar a sua própria avaliação do seu bem; mas podem, com justiça, ser punidas para prevenir a ocorrência de mal a outros, sendo esta uma forma de exercício do direito legítimo de autodefesa. O Sr. Owen afirma neste caso que punir é, de todo em todo, injusto; pois o criminoso não criou o seu próprio caráter; a sua educação e as circunstâncias que o rodeiam fizeram dele um criminoso, e por essas ele não é responsável. Todas estas opiniões são extremamente plausíveis; e, enquanto a questão for simplesmente mantida no plano da justiça, sem descer aos princípios que lhe estão subjacentes e constituem a fonte da sua autoridade, sou incapaz de ver como qualquer um destes pensadores pode ser refutado. Pois, na verdade, cada uma das três partes das regras de justiça é, reconhecidamente, verdadeira. O primeiro faz apelo à reconhecida injustiça de escolher um indivíduo e sacrificá-lo, sem o seu consentimento, para benefício de outras pessoas. O segundo baseia-se na reconhecida justiça da autodefesa, e na reconhecida injustiça de forçar uma pessoa a conformar-se às noções de outrem quanto ao que é o seu próprio bem. O apoiante de Owen invoca o princípio reconhecido de que é injusto punir alguém pelo que não depende de si. Cada um triunfará enquanto não for obrigado a tomar em linha de conta quaisquer outras máximas da justiça além daquela que escolheu; mas assim que as suas diferentes máximas são postas em confronto, cada um dos contendores parece ter exatamente o mesmo para dizer em sua defesa do que os outros. Nenhum pode desenvolver a sua própria noção de justiça sem violar outra igualmente vinculativa. Estas são dificuldades; sempre foram reconhecidas como tal; e muitos dispositivos foram inventados mais para as contornar do que para as ultrapassar. Como refúgio para a última das três, os homens conceberam aquilo a que chamaram o livre-arbítrio; imaginando que não podiam justificar a punição de um homem cuja vontade está num estado inteiramente odioso a menos que se supusesse que chegara a esse estado sem influência de circunstâncias anteriores. Para escapar às outras dificuldades, um estratagema preferido tem sido a ficção de um contrato, mediante o qual num qualquer período desconhecido todos os membros da sociedade se terão comprometido a obedecer às leis, e terão consentido em ser punidos por qualquer desobediência às mesmas; dando assim aos legisladores o direito, que de outra forma se presume não teriam, de puni-los, quer para o seu próprio bem, quer para o bem da sociedade. Considerava-se que esta ideia feliz permitia eliminar a dificuldade, e legitimava o infligir da punição graças a outra máxima de justiça tradicional, volenti non fit injuria; não é injusto o que é feito com o consentimento da pessoa que se visa castigar. Mal preciso de assinalar que, mesmo que o consentimento não seja uma mera ficção, esta máxima não é superior em autoridade às que pretensamente vem substituir. É, pelo contrário, um exemplo instrutivo do modo descuidado e irregular como se desenvolvem os supostos princípios de justiça. Este princípio, em particular, começou obviamente a ser usado como auxiliar nas exigências vagas dos tribunais, que por vezes são obrigados a contentar-se com pressuposições muito incertas, em virtude dos males maiores que frequentemente decorreriam de qualquer tentativa da sua parte de ser mais exatos. Mas mesmo os tribunais não conseguem aderir à máxima de forma consistente, pois permitem que alguns compromissos voluntários sejam postos de parte como fraudulentos, e, por vezes, como resultantes de mero engano ou má informação.
Além disso, quando é admitida a legitimidade de infligir uma punição, quantas concepções contraditórias de justiça se manifestam ao discutir a proporção adequada de punição para as violações da lei. Nenhuma regra sobre este assunto se impõe tão fortemente ao sentimento primitivo e espontâneo de justiça como a lex talionis, olho por olho, dente por dente. Embora este princípio da lei judaica e maometana tenha sido em geral abandonado na Europa enquanto máxima prática, suponho que existe na maioria dos espíritos um secreto anseio por ele; e quando a retribuição se precipita acidentalmente sobre um criminoso precisamente sob essa forma, o sentimento geral de satisfação demonstrado revela como é natural o sentimento de que é aceitável pagar na mesma moeda. Para muitos, o teste da justiça na imposição de penas é o de que a punição deve ser proporcional ao crime; significando isto que deve ser exactamente medida pela culpa moral do culpado (seja qual for o padrão deles para medir a culpa moral); na perspectiva destes, a consideração de quanta punição é necessária para a dissuasão do crime nada tem a ver com a questão da justiça; enquanto há outros para quem essa consideração é tudo, que defendem não ser justo, pelo menos para o homem, infligir a um semelhante, quaisquer que sejam os seus crimes, uma qualquer quantidade de sofrimento para lá do mínimo necessário para o impedir de repetir, e a outros de imitar, a sua conduta incorreta.
Tomemos outro exemplo de um tema já abordado: Numa associação industrial cooperativa, será ou não justo que o talento ou a perícia dêem direito a uma remuneração superior? Do lado de quem responde negativamente, afirma-se que quem dá o melhor que pode merece o mesmo, e não deve, à luz da justiça, ser colocado numa posição de inferioridade por coisas de que não tem culpa; que as capacidades superiores encerram em si vantagens mais que suficientes, pela admiração que suscitam, a influência pessoal que exercem, e pelas fontes de satisfação que as acompanham, sem a necessidade de adicionar a estas uma maior fatia dos bens do mundo; e que, pelo contrário, a sociedade está obrigada em justiça a compensar os menos favorecidos por esta imerecida desigualdade de benefícios, e não a agravá-la. No lado contrário defende-se que a sociedade recebe mais do trabalhador mais eficiente; que, sendo os seus serviços mais úteis, a sociedade lhe deve uma retribuição maior por eles; que uma maior fatia do resultado conjunto é na verdade obra sua, e não lhe reconhecer o direito a ela é uma espécie de roubo; que se ele receber apenas o mesmo que os outros, pode apenas exigir-se-lhe, em justiça, que produza o mesmo, e dedique uma menor percentagem de tempo e esforço, proporcionais à sua eficiência superior. Quem decidirá entre estes apelos a princípios de justiça contraditórios? A justiça tem neste caso duas faces, que é impossível harmonizar, e os dois contendores escolheram lados opostos; um deles olha para o que seria justo que o indivíduo recebesse, o outro para o que seria justo que a comunidade lhe concedesse. Cada uma destas posições é, do seu próprio ponto de vista, incontestável; e qualquer escolha entre elas, com base na justiça, terá de ser completamente arbitrária. Só a utilidade social pode decidir a preferência.
Uma vez mais, quantos, e quão irreconciliáveis, são os padrões de justiça aos quais se apela ao discutir a distribuição da carga fiscal. Uma opinião defende que o pagamento ao estado deveria ser feito em proporção numérica aos meios pecuniários. Outros pensam que a justiça ordena o que designam de tributação progressiva; tomar uma percentagem maior daqueles que podem dispensar mais. No plano da justiça natural, poderia fazer-se uma boa defesa da ideia de ignorar completamente os meios, e tomar de todos a mesma soma absoluta (sempre que fosse possível fazê-lo): assim como os sócios de uma associação ou de um clube pagam todos a mesma quantia pelos mesmos privilégios, possam ou não fazê-lo com a mesma facilidade. Uma vez que a proteção da lei e do governo é (poderia dizer-se) concedida a todos, e é igualmente requerida por todos, não há qualquer injustiça em fazer que todos a comprem ao mesmo preço. É considerado justo, e não injusto, que um comerciante cobre a todos os clientes o mesmo preço pelo mesmo artigo, e não um preço que varie de acordo com o seu poder de compra. Esta doutrina, no que diz respeito aos impostos, não tem defensores, por estar em forte conflito com os sentimentos de humanidade dos homens e o seu entendimento da expediência social; mas o princípio de justiça que invoca é tão verdadeiro e vinculativo como os que podem ser invocados contra ele. Exerce, por isso, uma influência tácita na linha de defesa usada por outros modos de abordar a tributação. As pessoas sentem-se obrigadas a defender que o estado faz mais pelos ricos do que pelos pobres, como justificação para lhes tirar mais; embora isto não seja de facto verdade, pois os ricos seriam de longe mais capazes de se proteger a si mesmos, na ausência de lei ou governo, do que os pobres, e na verdade seriam provavelmente bem sucedidos em converter os pobres em seus escravos. Outros, no entanto, aceitam esta concepção de justiça a ponto de defender que todos devem pagar a mesma taxa por cabeça pela sua proteção (sendo cada pessoa de igual valor para todos), e uma taxa diferente pela proteção das suas propriedades, que é desigual. A isto respondem outros que a totalidade do que um homem tem é tão valioso para ele como a totalidade de outro. Não há outra maneira de sair destas confusões a não ser a utilitarista.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Proudhon-Teoria da propriedade:por Rafael Hortz



Sobre o Texto:

Teoria da Propriedade é uma obra póstuma de Proudhon, que remonta a fase
final de seus escritos. Essa tradução consiste na retradução de um esboço de
tradução Francês-Inglês. A obra original foi consultada quando julgado
necessário.



Em Teoria da Propriedade, Proudhon passa a aceitar a propriedade, mesmo que
a contragosto. Ele afirma que a justificativa da propriedade não se encontra na
forma pela qual ela é estabelecida, mas sim pelo seu papel: ser uma forma de
defesa do indivíduo contra o Estado e qualquer forma de despotismo (seja ele
privado ou coletivo).
O desenvolvimento que dei a minha teoria da propriedade pode ser resumido
em algumas páginas.

Uma primeira coisa a observar é que, sob o nome genérico de propriedade, os
apologistas desta instituição confundiram, seja por ignorância ou por artifício,
todas as formas de posse: sistema comunal, enfiteuse [*1], usufruto, sistemas
feudais e alodiais; eles raciocinaram sobre o capital como se ele fosse renda,
sobre propriedade fungível como se fosse propriedade imóvel. Já fizemos
justiça a essa confusão.
A posse, indivisível, intransferível, inalienável, pertence ao soberano, príncipe,
governo ou coletividade, dos quais o inquilino é uma espécie de dependente,
arrendatário ou vassalo. Os alemães, antes da invasão, os bárbaros da Idade
Média, conheciam apenas ela; é o princípio da raça eslava, aplicado neste
momento pelo Imperador Alexandre a sessenta milhões de camponeses. Esta
posse implica nos vários direitos de uso, habitação, cultivo, pastoreio, caça e
pesca – todos os direitos naturais que Brissot chamou de propriedade de
acordo com a natureza; é a posse deste tipo, mas a qual eu não defini, a qual eu
me referia na minha primeira Memória e nas minhas Contradições [*2]. Essa
forma de posse é um grande passo na civilização; é melhor na prática do que o
domínio absoluto dos romanos, reproduzidos em nossa propriedade anárquica,
a qual está se matando com crises fiscais e seus próprios excessos. É certo que o
economista não pode exigir mais: lá o trabalhador é recompensado, seus frutos
garantidos; tudo que lhe pertence legitimamente está protegido. A teoria da
posse, princípio da civilização das sociedades eslavas, é o mais honorável
daquela raça: compensa pelo atraso de seu desenvolvimento e torna inexpiável
o crime da nobreza polonesa.
Mas é também a última palavra da civilização bem como do direito? Eu na acho;
pode se conceber algo mais; a soberania do homem não está completamente
satisfeita; a liberdade a mobilidade não são suficientes.

Propriedade simples ou aloidal – divisível, engajável, e alienável – é o domínio
absoluto do possuidor sobre algo. “o direito de usar a abusar”, conhecido
inicialmente como a “lei quritaire”, “dentro dos limites da lei”, a consciência
coletiva adiciona depois. A propriedade é romana; eu a vejo completamente
articulada apenas na Itália; e mesmo assim sua formação é lenta.

A justificativa do domínio da propriedade sempre tem sido a angústia dos
juristas, economistas e filósofos. O principio da apropriação é de que todo o
produto do trabalho, - tal como um arco, algumas flechas, um arado, um
rastilho, uma casa, - pertence de direito àquele que o criou. O homem não cria a
matéria, ele apenas a transforma. Entretanto, mesmo que ele não tenha criado a
madeira da qual ele confecciona o arco, a cama, a mesa, algumas cadeiras, ou
um balde, é da prática que o material toma a forma, e a propriedade sobre o
trabalho implica na propriedade sobre os materiais. É suposto que este material
é oferecido a todos, que ninguém é excluído, e que todos podem se apropriar
dele.
Será que esta teoria, que “la forme emporte le fonds”, se aplica à terra
cultivada? Já foi provado que o produtor tem direito ao seu produto, que o
colonizador tem direito aos frutos que ele criou. Está provado também que
existe o direito de limitar o consumo, acumular capital, e dispor dele de acordo
com sua vontade. Mas a questão da terra não pode ser respondida desta forma;
é um fato novo que excede o limite do direito do produtor. O produtor não
criou o solo, comum a todos. Está provado que aquele que preparou, limpou e
garantiu o solo possui um direito a remuneração, a uma compensação; será
demonstrado que esta compensação deve consistir não numa soma monetária,
mas num privilégio de plantar este solo durante certo período de tempo. Vamos
percorrer todo o caminho: será provado que cada ano de cultura, envolvendo
melhorias, confere ao cultivador o direito a uma nova compensação. Muito
bem! A propriedade não é perpétua. Os aluguéis da fazenda de nove, doze ou
treze anos podem ser leva em conta tudo aquilo no que diz respeito ao
fazendeiro, ao passo que o proprietário representa o domínio público. A
ocupação da terra da comuna eslava também leva em conta o camponês
meeiro; a lei é satisfeita, o trabalho é compensado: não há propriedade. A lei
romana e do Código Civil distinguia perfeitamente todas essas coisas: direitos
de uso, usufruto, habitação, exploração, posse. Como que os economistas
pretenderam confundir estes com o direito de propriedade? O que faremos
com o bucólico do Sr. Thiers e todas suas declamações estúpidas e seu
grupinho?

A economia social, como o direito, não conhece domínio, e existe
completamente fora da propriedade: o conceito de valor, salários, trabalho,
produto, troca, circulação, aluguel, compra e venda, moeda, imposto, crédito,
teoria da população, monopólio, patentes, direitos autorais, seguros, serviços
públicos, associação, etc. As relações da família e cidade não tem mais
necessidade da propriedade; o domínio pode ser reservado à comuna, ou ao
Estado; o aluguel então se torna imposto; o cultivador se torna um possuidor; é
melhor que ser um fazendeiro inquilino, melhor que meeiro; a liberdade e
individualidade desfrutam das mesmas garantias.

Deve ser bem compreendido: a humanidade não é nem proprietária da terra:
como poderia uma nação, como poderia um indivíduo em particular dizer que é
soberano da porção a qual lhe cabe? A humanidade não criou o solo: os
homens e a terra foram criados um para o outro e estão diante de uma
autoridade maior. Nós recebemos a terra em condições de ocupação e usufruto;
ela nos foi dada para ser possuída, explorada por nós solidariamente e
individualmente, sob nossa responsabilidade pessoal e coletiva. Nós nos
tornamos cultivadores, possuidores, ao desfrutar, de forma não arbitrária, mas
de acordo com regras que a consciência a razão descobrem, e para uma
finalidade a qual vai além de nosso prazer: essas regras e essa finalidade
excluem todo o absolutismo de nossa parte, e remetem o domínio terrestre a
uma autoridade maior que a nossa. O homem, disse outro dia um de nossos
bispos, é o capataz do globo. Essa fala foi muito bem recebida. Bem, ela não
expressa nada que eu não tenha dito, que a propriedade é superior a
humanidade, super-humana, e que toda atribuição desse tipo, para nós, pobre
criaturas, é usurpação.

Todos nossos argumentos em favor da propriedade, isto é, de uma soberania
eminente sobre as coisas, apenas são bem sucedidos em demonstrar a posse,
uso, usufruto, o direito de viver e trabalhar, nada mais.

Devemos sempre chegar à conclusão que a propriedade é uma verdadeira
ficção legal; pode ser que a ficção esteja fundamentada de tal forma que
devemos tomá-la como verdadeira. Caso contrario, nós não saímos do reino da
posse, e toda nossa argumentação é sofística e de ma fé. Pode ser possível que
essa ficção, que nos apavora porque não vemos o sentido dela, seja tão
sublime, tão esplêndida, tão elevada em sua justiça, que nenhum de nossos
direitos mais reais, positivos, imanentes se aproxime dela, e que eles próprios
sobrevivam graças aquela pedra mestra, uma ficção verdadeira.

O princípio da propriedade – ultra legal, extra jurídico, anti-econômico, super-
humano – é, no entanto, um produto espontâneo do ser Coletivo e da
sociedade, e cabe a nós procurar neste por, mesmo que não seja uma
justificativa completa, ao menos uma explicação.

O direito a propriedade é absoluto, jus utendi et abutendi, o direito de usar e
abusar. Ele se opõe a outro absoluto, o governo, que começa ao impor a seu
antagonista a restrição, quatenùs júris ratio patitur, “dentro dos limites da lei”.
Da razão da lei para a razão do Estado é apenas um passo: estamos em perigo
constante de usurpação e despotismo. A justificativa da propriedade, que em
vão procuramos nas suas origens – primeira ocupação, usucapião, conquista,
apropriação pelo trabalho, - encontramos em seus objetivos: ela é
essencialmente política. Aonde o domínio pertence à coletividade, ao senado,
aristocracia, príncipe ou imperador, existe apenas feudalismo, vassalagem,
hierarquia e subordinação; não há liberdade, e, consequentemente, não há
autonomia. É para quebrar os laços da soberania coletiva, tão exorbitante e
formidável, que o domínio da propriedade se levantou em oposição, sinal
verdadeiro da soberania do cidadão; é para quebrar esses laços que o domínio
foi atribuído ao indivíduo, com o Estado mantendo apenas as partes
consideradas indivisíveis e comuns: rios, lagos, açudes, lugares públicos,
desertos, montanhas não cultivadas, florestas, terrenos baldios, e tudo o que
não pode ser apropriado. É para aumentar a facilidade de transporte e
circulação que a terra foi feita mobilizável, alienável, divisível, após ter sido feita hereditária. A propriedade alodial é a divisão da soberania: graças a isto ela é particularmente detestável para o poder e a democracia. É detestável primeiro
graças a sua onipotência; é a adversária da autocracia, assim como a liberdade é
a inimiga da autoridade; ela não agrada aos democratas, os que são todos
entusiastas da unidade, centralização e absolutismo. As pessoas ficam alegares
quando pretendem lutar contra os proprietários. E mesmo assim o allodium é a
base da república.

A constituição da república, - permita-me ao menos usar essa palavra em seu
maior sentido jurídico, - é a condição sine qua non da segurança. Um dia, ao
apresentar Louis-Phillipe, o General Lafayette disse: “Isto é o melhor das
repúblicas”; e a nobreza constitucional foi definida: “Uma monarquia cercada
por instituições republicanas”. A palavra república não é então aliciante por si
só: ela responde às visões da ciência assim como satisfaz desejos.

As conseqüências imediatas da propriedade aloidal são: 1) administração da
comuna pelos proprietários, fazendeiros e trabalhadores, reunidos em conselho;
por isso, independência comunal e da disposição de suas propriedades; 2)
administração da província pelos provincianos; logo, descentralização e o germe
da federação. A função real, definida pelo sistema constitucional, é substituída
aqui pelos cidadãos proprietários, com um olho aberto aos assuntos públicos:
nada precisa ser ponderado.

A propriedade feudal nunca irá gerar uma república; e similarmente uma
república que permitisse o alódio se deteriorar em feudo, o qual, partindo da
propriedade retornaria ao comunismo eslavo, não se sustentaria; ela se tornaria
uma autocracia.

Da mesma forma, a verdadeira propriedade não engendrará uma monarquia;
uma monarquia não engendrará verdadeira propriedade. Se o oposto fosse
obtido, se uma aglomeração de proprietários elegesse um líder, pelo mesmo
motivo eles estariam abdicando sua cota de soberania, e, mais cedo ou mais
tarde, o princípio autoritário seria alterado em suas mãos; ou, se uma
monarquia criasse proprietários, ela iria implicitamente abdicar, se demoliria, a
menos que se tivesse transformado voluntariamente numa nobreza
constitucional, mais nominal que efetiva, representando os proprietários. Vimos
isto na França, quando, sob Louis-Phillipe, liberais e republicanos travaram
guerra contra o paroquialismo, l’espirit de clocher [*3]. A causa da nobreza
estava servida.

Dessa forma, todas minhas críticas anteriores, todas as conclusões igualitárias
que eu deduzi partindo delas, recebem uma brilhante confirmação.

O princípio da propriedade é ultra-legal, extralegal, absolutista, e egoísta por
natureza, até o ponto da desigualdade: deve ser assim.

Ele tem por contrapeso a razão do Estado, o qual é absolutista, ultra-legal, não
liberal, e governamental, até o ponto da opressão: deve ser assim.

Aqui temos como, em projeções da razão universal, o princípio do egoísmo,
usurpador por natureza, sem integridade, se torna um instrumento de justiça e
ordem, até o ponto em que a propriedade e o direito são idéias inseparáveis e
quase sinônimas. A propriedade é o egoísmo idealizado, consagrado, investido
com uma função política e jurídica.

Tem que ser assim: porque o direito nunca é mais bem observado quando
encontra um defensor no egoísmo e na coalizão de egoísmos. A liberdade
nunca será defendida contra o poder, se não tiver a sua disposição meios de
defesa, se não tiver uma fortaleza invulnerável.

O leitor deve atentar para não ver neste antagonismo, nessas oposições, nessas
equilibrações, uma mera observação espirituosa, um jeu d’espirit. Eu sei que
uma teoria simplística, como o comunismo ou o absolutismo do Estado, é mais
fácil de ser compreendida do que o estudo das antinomias. Mas a culpa não é
minha, um simples observador e procurador de séries. Eu escuto certos
reformadores dizer: Vamos supor todas as complicações da autoridade,
liberdade, posse, competição, monopólio, imposto, balança comercial, serviços
públicos; vamos criar um plano uniforme de sociedade, e tudo estará
simplificado e resolvido. Eles raciocinam como o médico que disse: Com seus
diversos elementos, - ossos, músculos, tendões, nervos, vísceras, sangue arterial
e venoso, fluídos gástricos e pancreáticos, quilo, humores lacrimais e sinoviais,
gases, líquidos e sólidos, - o corpo é ingovernável. Vamos reduzi-lo a um sólido
único, matéria elástica, um osso, por exemplo; a higiene e a terapia se tornarão
brincadeira de criança. – Que seja então, apenas a sociedade não pode se
ossificar mais que o corpo humano. Nosso sistema social é mais complicado,
muito mais do que alguém imaginou. Se, hoje, coletamos todos os dados, eles
precisam ser coordenados, sintetizados de acordo com suas próprias leis. Aí, um
pensamento se expõe, uma vida coletiva íntima se desenvolve fora das leis da
geometria e da mecânica; é relutante assimilar ao movimento rápido, uniforme,
infalível da cristalização; do qual a lógica unitária, fatalista, ordinária, silogística é incapaz de compreender, mas que é explicado maravilhosamente com a ajuda de uma filosofia mais ampla, admitindo no sistema a pluralidade de princípios, a luta de elementos, a oposição de contrários e a síntese de todos os indefiníveis
e absolutos.

Agora, como sabemos que existem graus de inteligência assim como de força;
graus de memória, reflexão, idealização, a capacidade de invenção; graus em
amor e em pensamento; graus em sensibilidade; graus de personalidade ou de
consciência; como é impossível dizer aonde o que chamamos de alma começa e
onde termina, porque se recusar a admitir que os princípios sociais, - tão bem
conectados, tão bem pensados, e nos quais se encontra tanta razão, previsão,
sentimento, paixão e justiça, - são o sinal de uma vida verdadeira, de um
pensamento mais elevado, de uma razão constituída diferentemente de nossa
própria.

Porque, se é assim, não veremos nesses fatos a realização da criação direta da
sociedade por ela mesma, resultando da simples conexão dos elementos e das
forças que constituem a sociedade?

Surpreendemos uma lógica a parte, máximas que não são aquelas de nossa
razão individual, apesar de que a razão venha, com o estudo da sociedade, a
descobri-las e torna-las nossas. Há então uma diferença entre a razão individual
e a razão coletiva.

Pudemos ver novamente que, graças à propriedade e seus anexos, outro
fenômeno, outra lei, aquela das três forças, indo e voltando, aproximações
indefinidas, latitude de ação e reação, elasticidade da natureza, a harmonia
estendida, a qual é o caráter único da vida, da liberdade e da imaginação. A
propriedade e o governo são duas criações espontâneas da lei da imanência,
que nega a idéia de iniciação externa, hipótese na qual cada grupo humano
necessitaria de um iniciador especial.

Compreendido isto, observamos que as leis gerais da história são as mesmas da
organização social. Para contar a história da propriedade entre um povo é
contar como ela atravessou as crises de sua formação política, com ela produziu
seus poderes e seus órgãos, igualou suas forças, regulou seus interesses,
capacitou seus cidadãos; como ela viveu e como ela morreu. A propriedade é o
princípio mais fundamental com o qual se pode explicar as revoluções da
história. Ela não existiu ainda nas condições em que a teoria a coloca; nenhuma
nação esteve algum dia preparada para esta instituição, mas ela com certeza
governa a história, apesar de ausente, e apressa as nações a reconhecê-la,
punindo os traidores.

O direito romano a reconheceu apenas de uma forma incompleta,
unilateralmente. Ele definiu bem a soberania do cidadão sobre a terra devido a
ele; ele não reconheceu o papel nem definiu o direito do Estado. A propriedade
romana é uma propriedade independente do contrato social, absoluta, sem
solidariedade nem reciprocidade, anterior e até superior ao direito público,
egoísta, viciosa e pecadora, e, portanto, condenada com justiça pela Igreja. A
República e o Império sucumbiram, um após o outro, uma vez que o
patriarcado quis apenas a propriedade por si só; porque a vitoriosa plebe não
soube como adquiri-la, coloca-la em funcionamento e consolida-la; e porque a
escravidão, o colonato, corrompeu tudo. Quanto ao resto, é através da
propriedade alodial que as aristocracias e todo o despotismo foram derrotados,
desde o fim do império ocidental até hoje em dia. A propriedade alodial,
abandonada pela nobreza às comunas e ao apodrecimento, asfixiou o poder da
nobreza, e, em 1789, tragou os feudos; - é o mesmo princípio o qual, após ter
trazido a usurpação do trono da nobreza polonesa, no inicio simples
usufrutuários, se voltou contra ela e a fez perder sua nacionalidade; o qual, em
1846, trouxe os massacres da Galácia.

É contra o princípio aloidal que a Inglaterra se endureceu, preferindo, seguindo
o exemplo dos patrícios romanos, jogar o mundo aos seus trabalhadores do
que permitir a divisão e a mobilização do solo, e equalizar a propriedade.

O princípio de propriedade sintética, aloidal ou igual, teria sido
progressivamente conduzido a França de 89 a uma República igualitária, com
ou sem dinastias: o princípio dinástico devendo ser subordinado tanto na
França como na Inglaterra, mas de acordo com outro sistema. Houve um
momento de esperança, em 1830. Infelizmente, os espíritos predispostos às
idéias inglesas não captaram a profunda diferença que deve distinguir a
constituição francesa, baseada no alódio, e a constituição inglesa, baseada no
feudo. Foi Sieyès, um dos mais profundos de nossos políticos, que disseminou o
erro.

Um censo eleitoral foi então estabelecido, composto por colégios menores e
outros maiores: eles supunham pequenas e grandes propriedades;
imperceptivelmente, enquanto a posse do solo erodia dramaticamente entre as
classes baixas, ela foi reunida novamente, e a grande propriedade se reformou
com a ajuda do capital industrial; o feudalismo, - financeiro, manufatureiro, dos
transportes, mineração, Judaico, - lhe sucedeu; de forma que a França não se
conhece mais hoje em dia, com alguns dizendo que o governo constitucional,
importado da Inglaterra, não foi construído para ela; um pequeno número, que
afirma a República e desejam apenas uma câmara, não conhece ele próprio o
motivo de seu desejo, ou os princípios constitutivos do governo da Revolução.

A propriedade passou por números eclipses na historia, sob os romanos, em
meio aos bárbaros, nos tempos modernos e em nossos dias. Encontramos as
causas desses lapsos na ignorância, incompetência, e especialmente na
indignidade dos proprietários. Em Roma, a avareza dos nobres, sua resistência
cega às reclamações legítimas do povo, o declínio dos plebeus, preferindo
cultuar o banditismo dos exércitos, pilhagem militar e os privilégios cesarianos,
criou um novo começo, junto com a propriedade, da lei, liberdades, e
nacionalidade. A opressão feudal, na Idade Média, expeliu todos os pequenos
proprietários do alódio ao feudo. A propriedade, eclipsada por mais de mil
anos, reapareceu com a Revolução Francesa. Seu período ascendente parou no
meio do reinado de Louis-Philippe; desde então, esteve em declínio:
indignidade.

A massa de proprietários está em desgraça, especialmente no campo. A
Revolução, ao vender os bens da Igreja e dos emigrados, criou uma nova classe
de proprietários; ela acreditou que eles estariam interessados na liberdade. De
maneira alguma: o que interessou essa classe é que os emigrados e os
Bourbons não retornaram, e isso é tudo. Para essa finalidade, os beneficiários
imaginaram nada melhor do que lhes conferir um mestre, Napoleão. E quando,
ao exercer clemência, ele autorizou a volta dos emigrados, fizeram disso um
crime: aqueles nunca teriam pensado nestes tão distantes.

A propriedade, criada pela Revolução, não se considera mais um instituição
política, contrabalançando o Estado como uma garantidora da liberdade e da
boa administração; ela se considera, por força do habito, como um privilégio,
desfrute, como uma nova aristocracia, aliada aos pobres através da divisão de
empregos, consequentemente de impostos, e está interessada então na
exploração das massas. Ela tem apenas que pensar em sua presa. O caos é
profundo e não está claro qual o sistema a acusar. A legislação de 89 não tinha
capacidade de previsão; os novos proprietários, compradores de bens nacionais,
não tinham caráter e espírito público ao dizer para Napoleão I: Reine e governe,
contanto que desfrutemos. Sob a Restauração, houve um instinto de reforma; a
burguesia se tornou a oposição, que é seu lugar; ela criou uma antítese ao
Estado; porém, isso foi acidental: alguns viram nos Bourbons príncipes do
antigo regime; alguns lutaram pela manutenção das vendas; e quando a
Revolução de Julho mudou a dinastia, a propriedade se devotou ao poder. Seu
acordo foi rapidamente concluído: a burguesia, através de seus representantes,
consentiu ao imposto, nove décimos do qual voltava para ela sob a forma de
empregos. Ela criou corrupção num sistema, e desonrou a propriedade através
de agiotagem; ela queria juntar os benefícios do banco àqueles do aluguel; ela
preferia os estipêndios do Estado, os ganhos do tráfico e da Bolsa à produção e
ao comercio; é a serva das grandes companhias.

Um ponto chave que não pode ser esquecido é que o cidadão, através de um
pacto federativo que lhe confere propriedade, reúne dois deveres
contraditórios: ele deve seguir, de um lado, a lei de seus interesses, e, de outro,
ele deve ter certeza que, como um membro do corpo social, sua propriedade
não é prejudicial aos assuntos públicos. Em suma, ele é constituído um
observador e policial contra si mesmo. Essa qualidade dupla é essencial para a
constituição da liberdade; sem ela todos os edifícios caem; é necessário retornar
ao princípio da polícia e autoridade. Onde está a moral pública nesse capítulo?


Nós tivemos uma regulação da padaria. Agora, isto teria sido inútil se o corpo
social tivesse sido organizado de uma maneira que a preparação do pão, a
venda do trigo, fossem feitas de forma verdadeira e correta, o que não
aconteceu e não virá a acontecer enquanto nossa moral não seja renovada. De
qualquer forma, a regulação nunca teve poder contra o pacto da fome, tão real
hoje como em 89. Nós regulamos o açougue, que vende cadáveres como se
fossem carne fresca, e cachorros como bifes; regulação dos mercados: pesos e
medidas, qualidade e quantidade. Vegetais, frutas, aves, caça, peixe, manteiga,
laticínios, - tudo isso é defeituoso, tudo sobre-precificado. Não há um remédio
na supressão, enquanto a consciência pública não seja renovada, enquanto,
através dessa regeneração, o cidadão produtor não se torne seu próprio estrito
supervisor. Ele pode fazer isto, sim ou não? A propriedade pode se tornar
sagrada? É a condenação, que a evangelho a colocou sobre ela, indelével? No
primeiro caso, podemos ser livres; no segundo, nós nos resignamos; estamos
fatalmente e sempre sob a dupla lei do Império e da Igreja, e todas as nossas
mostras de liberalismo são pura hipocrisia e um aumento da miséria.

Tudo considerado, é uma questão de saber se a nação francesa é hoje capaz de
fornecer proprietários verdadeiros. O que é certo é que a propriedade deve ser
regenerada entre nós. O elemento dessa regeneração é, junto com a
regeneração moral a qual acabamos de comentar, o equilíbrio.

Toda instituição da propriedade supõe: 1) uma distribuição igual de terra entre
os possuidores; ou 2) um equivalente em favor daqueles que não possuem nada
do solo. Mas isto é uma pura suposição: a igualdade de propriedade não é de
forma alguma um fato inicial; está nas finalidades da instituição, não em suas
origens. Notamos primeiro de tudo que a propriedade, pelo fato de ser abusiva,
absolutista, e baseada no egoísmo, deve inevitavelmente tender a se restringir,
a competir com si mesma, e, como uma conseqüência, a se equilibrar. Sua
tendência é a igualdade de condições e fortunas. Exatamente por ser absoluta,
ela nega qualquer idéia de absorção. Vamos ponderar bem isto.

A propriedade não é medida por mérito, como também não são os salários,
recompensas, condecorações, nem títulos honorários; ela não é medida pelo
poder do indivíduo, uma vez que o trabalho, produção, crédito e troca não a
requerem. É uma doação, concedida ao homem, com o objetivo de protegê-lo
contra os ataques da pobreza e incursões de seus companheiros. É a armadura
frontal de sua personalidade e igualdade, independente das diferenças em
talento, gênio, força, dedicação, etc.

“Suponha”, disse eu em 1840, “que essa tarefa social diária consista em arar,
capinar ou colher dois decâmetros quadrados, e que o tempo médio necessário
para completar a tarefa seja sete horas: um trabalhador a terminará em seis
horas, outro demandará oito; a maioria, entretanto, trabalhará sete. Mas se cada
um prover a sua quantidade demandada de trabalho, seja lá qual for o tempo
que leve, eles tem direitos a salários iguais. Deveria o trabalhador que é capaz
de terminar sua tarefa em seis horas ter o direito, baseado na força e atividade
superior, de usurpar a tarefa do trabalhador menos talentoso, roubando assim
seu trabalho e pão? Quem se atreve a manter tal proposição? (...) Se o forte vier
ajudar o fraco, sua gentileza merece reconhecimento e amor; mas sua ajuda
deve ser aceita como uma livre doação, - não imposta através da força, nem
oferecida a um preço”.

Sob o regime comunista ou governamental, é necessário que a polícia e a
autoridade garantam os fracos contra os fortes; infelizmente, a polícia e a
autoridade, enquanto existam, sempre funcionaram para o benefício do mais
forte, o qual elas sempre ampliaram os meios de usurpação. A propriedade –
absoluta, incontrolável – se protege. É uma arma defensiva do cidadão, seu
escudo; o trabalho é sua espada.

Aqui temos porque ela é adequada a todos: tanto ao jovem como ao adulto
maduro, ao branco quanto ao negro, ao retardatário como ao precoce, ao
ignorante quanto ao letrado, ao artesão quanto ao funcionário, ao trabalhador
quanto ao empreendedor, ao fazendeiro quanto ao burguês e ao nobre. Aqui
temos a Igreja a prefere aos salários; e, pela mesma razão, porque o papado
requer, por sua vez, soberania. Todos os bispos, na Idade Média, eram
soberanos; todos, até 1789, eram proprietários; o próprio papa continuava
como uma relíquia.

O equilíbrio da propriedade ainda requer algumas garantias políticas e
econômicas. Propriedade, - Estado, esses são os dois pólos da sociedade. A
teoria da propriedade é a peça companheira da teoria da justificação, através
dos sacramentos, do homem decaído.

As garantias da propriedade contra ela mesma são:

1. Crédito mútuo e gratuito.
2. Impostos.
3. Armazéns, portos, mercados (Ver meu projeto para o Palais de
l’Exposition universelle, p.249).
4. Seguro mútuo e balança comercial.
5. Ensino público, universal e igual.
6. Associação industrial e agricultora.
7. Organização dos serviços públicos: canais, estradas de ferro, estradas,
portos, correios, telégrafos, drenagem, irrigação.


As garantias da propriedade contra o Estado são:

1. Separação e distribuição dos poderes.
2. Igualdade perante a lei.
3. Júri, juiz de fato, e juiz da lei.
4. Liberdade da imprensa.
5. Monitoramento público.
6. Organização federativa.
7. Organização comunal e provincial.

O Estado é composto de: 1) da federação dos proprietários, agrupados em
distritos, departamentos e províncias; 2) das associações industriais, pequenas
repúblicas de trabalhadores; 3) serviços públicos (a preço de custo); 4) artesãos
e comerciantes livres. Normalmente, o número de industriais, artesãos e
mercadores é determinado por aqueles dos proprietários de terra. Todo país
deve viver de sua própria produção; consequentemente, a produção industrial
deve ser igual ao excesso de subsistências não consumidas pelos proprietários.

Existem exceções a essa regra: na Inglaterra, por exemplo, a produção industrial
excedeu aquela proporção, graças ao comércio exterior. É uma anormalidade
temporária; a menos que certas raças devam ser condenadas a uma
subalternização eterna. Além do mais, existem produtos excepcionais em
demanda em todo lugar: aqueles da pesca, por exemplo, e aqueles da
exploração mineral. Mas, medida no globo como um todo, a proporção é como
eu digo: o limite de subsistência é a reguladora; consequentemente, a
agricultura é a atividade essencial e predominante.

Ao constituir a propriedade sobre a terra, o legislador quis uma coisa: que a
terra não estivesse nas mãos do Estado, de um comunismo perigoso ou de um
governamentalismo, mas sim nas mãos de todos. A tendência é, como
conseqüência, e como somos avisados constantemente, em direção ao
balanceamento da propriedade, e subsequentemente de condições e fortunas.

É assim que, através das regras da associação industrial, as quais mais cedo ou
mais tarde, com a ajuda da melhor legislação, incluirão corpos industriais
maiores, cada trabalhador tem em suas mais uma porção do capital.

É assim que, através da lei da difusão do trabalho, e da ramificação dos
impostos, todos devem pagar sua parte mais ou menos iguais das despesas
públicas.

É assim que, através da organização verdadeira do sufrágio universal, todo
cidadão terá uma mão no governo; e assim também que, através da
organização do crédito, todo cidadão terá uma mão na circulação, e se vê
novamente como um parceiro geral e silencioso, banqueiro e sacador perante o
público.

É assim que, através do alistamento, cada cidadão tomará parte na defesa;
através da educação, tomará parte na filosofia e ciência.

É assim que, finalmente, que, através do direito de livre exame e da livre
publicação, todo cidadão tem uma mão nas idéias e em todos os ideais que
podem ser produzidos.

A humanidade avança através de aproximações:

1. A aproximação da igualdade de capacidades através da educação, da divisão
do trabalho, e do desenvolvimento das aptidões;
2. A aproximação da igualdade de fortunas através da liberdade comercial e
industrial.
3. A aproximação da igualdade de impostos;
4. A aproximação da igualdade de propriedade;
5. A aproximação da an-arquia;
6. A aproximação da não-religiao, ou não misticismo;
7. Progresso indefinido da ciência, lei, liberdade, honra e justiça.

É a prova de que o destino não governa a sociedade; que as proposições
aritméticas e geométricas não regulam seus movimentos, assim como na
mineralogia ou química; que existe uma vida, uma alma, uma liberdade a qual
foge das medidas fixas, precisas que governam a matéria. O materialismo, no
que tange a sociedade, é absurdo.

Assim, sobre essa grande questão, nossa crítica se mantém a mesma, e nossas
conclusões são sempre as mesmas: queremos igualdade, mais e mais
completamente aproximada de condições e fortunas, assim como desejamos,
mais e mais, a equalização das responsabilidades. Rejeitamos, assim como o
governamentalismo, o comunismo em todas suas formas; queremos a definição
das funções oficiais e das funções individuais; dos serviços públicos e dos
serviços gratuitos. Há apenas uma coisa nova em nossa tese: é que a mesma
propriedade, o princípio contraditório e abusivo o qual incitou nossa
reprovação, aceitamos hoje completamente, junto com sua qualificação
igualmente contraditória: Dominuim est just utendi et abutendi re suâ, quatenus
júris ratio patur. Compreendemos finalmente que a oposição de dois absolutos
– um deles que, sozinho, seria imperdoavelmente repreensível, e ambos os
quais, que se operassem separadamente, seriam rejeitados – é o pilar da
economia social e do direito público: mas cabe a nós governa-los e os fazerem
agir de acordo com as leis da lógica.

O que fazem os defensores da propriedade? Os economistas da escola de Say e
Malthus?

Para eles, a propriedade foi um sacramento que se mantinha sozinho e por si
só, anterior e superior à razão do Estado, independente do Estado, este o qual
eles iriam mortificar além de qualquer medida.

Eles desejariam então a propriedade independente da lei, assim como desejam
a competição independente da lei; a liberdade de importar e exportar
independente da lei; apoio industrial, a Bolsa, o Banco, o salariado, o
arrendatário, independentes da lei. Isto é, em suas teorias da propriedade, da
competição, da concorrência e do crédito, não contentes em declarar uma
liberdade ilimitada, uma iniciativa sem limites, a qual também desejamos, eles
não levam em conta os interesses da coletividade, os quais são a lei; não
compreendem que a economia política é composta de duas partes
fundamentais: a descrição das forças econômicas e fenômenos independentes
da lei, e sua regularização através da lei.

Eles se atreveriam a dizer que a equalização da propriedade, como eu a
entendo, seria sua própria destruição. E daí?! Não será mais propriedade, uma
vez que o cultivador irá partilhar do aluguel e dos lucros; porque os direitos do
terceiro que construiu ou plantou serão estabelecidos e reconhecidos; porque a
propriedade sobre a terra não significará mais necessariamente em tudo o que
está acima ou abaixo dela; porque o arrendador, em caso de falência, chegará
junto com os outros credores a uma divisão dos ativos, sem privilégio; porque
entre proprietários legítimos haverá igualdade, não hierarquia; porque ao invés
de ver na propriedade apenas desfrute e aluguel, o proprietário encontrará nela
as garantias de sua independência e dignidade; porque ao invés de ser uma
figura ridícula, Sr. Prudhomme ou Sr. Jourdain, o proprietário será um cidadão
digno, consciente de seus deveres assim como de seus direitos, o guardião da
liberdade contra o despotismo e usurpação?

Eu desenvolvi as considerações que fazem a propriedade inteligível, racional,
legítima e sem as quais, continua usurpadora e odiosa.

E ainda, mesmo nessas condições, ela se mostra algo egoísta que é sempre
desagradável a mim. Minha razão sendo igualitária, anti-governamental, e
inimiga da ferocidade e do abuso da força, pode aceitar a dependência da
propriedade como um escudo, um lugar de proteção para os fracos: meu
coração nunca estará lá. Quanto a mim, eu não preciso dessa concessão, seja
para ganhar meu pão, ou para cumprir meus deveres civis, ou para minha
felicidade. Eu não preciso encontrá-la em outros para ajudá-los em sua fraqueza
e respeitar seus direitos. Eu já sinto bastante da energia da consciência, força
intelectual suficiente, para sustentar com dignidade todas minhas relações; e se
a maioria dos meus concidadãos fosse como eu, porque precisaríamos lidar
com tal instituição? Onde estaria o risco de tirania, ou o risco de ruína na
competição e livre troca? Onde estaria o perigo para o fraco, o órfão e o
trabalhador? Onde estaria a necessidade de orgulho, ambição e avareza, que só
podem se satisfazer através de uma imensa apropriação?

Uma pequena casa alugada, um jardim para usar, já é o bastante para mim:
minha profissão não sendo uma de cultivador do solo, do vinhedo, ou dos
campos, eu não preciso criar um parque, ou uma vasta herança. E quando eu
fosse um trabalhador ou fabricante de vinhos, a posse eslava é suficiente para
mim: a cota devida a cada chefe de família em cada comuna. Eu não consigo
agüentar a insolência do homem que, com seus pés no chão o qual ele mantém
apenas por livre cessão, lhe proíbe a passagem, lhe preveni de pegar uma flor
em seu campo ou de caminhar pela trilha.

Quando eu vejo todas essas cercas por Paris, que bloqueiam a visão do país e o
desfrute do solo por parte do pobre pedestre, eu sinto uma irritação violenta.
Eu me pergunto se a propriedade que me cerca dessa forma em toda casa não
é na verdade expropriação, expulsão da terra. Propriedade Privada! Às vezes eu
vejo essa frase escrita em letras garrafais na entrada de uma passagem aberta,
como uma sentinela me impedindo de passar. Eu juro que minha dignidade
como um homem se eriça em desgosto. Oh! Eu me lembro da religião de Cristo,
que recomenda desapego, prega modéstia, simplicidade de espírito e de
coração. Fora com o velho aristocrata, impiedoso e ambicioso; fora com o barão
insolente, o burguês avarento, e o calejado camponês, durus arator. Esse mundo
é odioso a mim. Eu não consigo amá-lo nem olha-lo. Se um dia eu me
encontrar um proprietário, que Deus e os homens, especialmente os pobres, me
perdoem por isso!



FIM



Notas do Tradutor:



[*1] Forma na qual há uma concessão da posse mediante um pagamento de
tributos.



[*2] Ele se refere à “O Que é Propriedade?” e “Filosofia da Miséria”,
respectivamente.




[*3] Literalmente, “espírito da torre-sino”. Devemos levar em conta que esta é
uma retradução de um esboço de tradução francês-inglês, e muitos termos
foram deixados no original.

domingo, 14 de novembro de 2010

Abolição do Trabalho-Bob Black:





«Existe tanta liberdade numa moderada ditadura desestalinizada como num ordinário local de trabalho americano. A hierarquia e a disciplina no escritório ou na fábrica é idêntica àquela que encontramos na prisão ou num convento.»



Nunca ninguém deveria trabalhar.

O trabalho é a gênese de grande parte da miséria do mundo, é causa de muito do mal que acontece. Somos obrigados a viver sob o seu desígnio. Para acabar com o sofrimento, temos que parar de trabalhar.

Isto não significa que tenhamos que desistir de fazer coisas. Mas sim, provocar uma revolução jocosa, uma nova onda de vida baseada no divertimento. Por divertimento entenda-se festividade, criação facultativa, convívio. O divertimento não é passivo, é muito mais do que o jogo das crianças.

Invoco a aventura colectiva num prazer generalizado, numa exuberância gratuitamente interdependente. Necessitamos de mais tempo de pura preguiça e descanso indiferente ao salário ou à ocupação. Reparem, uma vez saídos do emprego quase todos nós queremos representar, o que conduz ao esgotamento.

Oblomovismo e Stakhanovismo (1) são dois lados da mesma invenção humilhante. Uma vida jocosa não é compatível com a realidade. O pior, é a maneira de encarar a vida como mera sobrevivência. Curiosamente — ou talvez não — todos os antigos ideólogos são conservadores porque crêem no trabalho. Alguns, como os marxistas e a maior parte dos anarquistas, crêem nele porque acreditam em pouca coisa.

Os liberais dizem que há que eliminar a discriminação no emprego. Nós dizemos, há que acabar com ele. Os conservadores apoiam o direito ao trabalho. Imitando o travesso genro de Karl Marx, Paul Lafargue, apoiamos o direito à preguiça. Os esquerdistas são a favor do emprego permanente. Nós estamos a favor do desemprego iminente. Os trotskistas agitam-se por uma revolução permanente. Nós debatemo-nos por uma orgia latente.

Todos os ideólogos que defendem o trabalho são estranhamente relutantes em confessar que o fazem em seu próprio benefício. Sempre preocupados com o salário, as horas, as condições de trabalho, a exploração, a produtividade, a rentabilidade, estão dispostos a falar, mas sobre o trabalho. Estes peritos que se oferecem para pensar por nós raramente partilham as suas consusões sobre o trabalho, projectando-nos assim a vida. Até lançam larachas uns aos outros sobre particularidades. Sindicatos e administrações embora hesitantes sobre o preço, concordam que temos que vender o tempo da nossa vida em troca da sobrevivência.

Os marxistas pensam que devíamos ser governados por burocratas. Os «libertarianos» (2) optam por homens de negócios. As feministas nada têm a obstar, desde que sejamos governados por mulheres. É óbvio que estes ideólogos têm diferentes opiniões acerca do modo de iludir o roubo no poder. Obviamente, nenhum deles põe qualquer objecção ao que se passa, desde que continuemos a trabalhar.

Talvez não estejam a levar a sério o que estou a dizer. Não somente estou a brincar como também estou a falar a sério. Ser jocoso não significa ser burlesco, embora a frivolidade não seja trivialidade. Muitas vezes convém tratar a frivolidade de um modo sério. Gostaríamos que a vida fosse um jogo, mas um jogo de alta aposta. Queremos jogar para nos defendermos. Ser jocoso não é ser «quaaludic» (3). Temos em grande estima o torpor, mas só é recompensador quando pontuam outros prazeres e passatempos. Não estamos a promover a desocupação como uma disciplina administrada, chamada o «descanso», longe disso. O descanso quer dizer não trabalhar por amor ao trabalho, é o tempo em que saímos do emprego sem todavia deixar de pensar nele. Muita gente existe que, ao regressar de férias, fica tão deprimida que só descansa depois de retomar o seu posto. A diferença entre o trabalho e o descanso reside no fato de no trabalho sermos, pelo menos, pagos pela nossa cedência e enfraquecimento.

Não estamos a tentar definir jogos. Quando dizemos querer abolir o trabalho, queremos mesmo dizer isso, definindo os nosso termos de um modo não idiossincrático. A nossa mínima definição de trabalho é aquela em que somos obrigados a produzir, isto é a produção compulsória. Ambos são princípios essenciais. O trabalho é a produção pela economia ou por meios políticos, por pessoas de cabelos ruivos ou por pregadores, por outras palavras, a cenoura é igual ao pau. Porém, nem tudo o que criamos é trabalho e ele nunca é propositadamente executado, é-o para que alguém saia beneficiado da sua produção. É isto que significa o trabalho. Defini-lo é desprezá-lo. E assim sendo, é muitas vezes pior do que a sua própria definição. É necessária uma cuidada elaboração do tempo. Adiantando, o trabalho é um crivo nas sociedades, incluindo as industrializadas, sejam elas capitalistas ou comunistas. Por isso ele é variado, conforme às suas características para realçar todo o ódio que em si encerra.

Usualmente, (e isto é ainda mais verdadeiro em sociedades cuja economia se encontre estatizada, do que nas de «livre mercado», onde o Estado é na maior parte dos casos, o único empregador e onde toda a gente é empregada) o trabalho é uma ocupação e é «salariato», o que quer dizer que tenho que te vender ao «Plano». No entanto, 95% dos americanos que trabalham fazem-no para alguém. Na defunta URSS ou na actual Cuba, ou em qualquer outra experiência do «socialismo de Estado», o qual necessita da força da adulação, o número dos empregados aproxima-se dos 100%.

Enquanto os camponeses do denominado «terceiro mundo» — no México, Brasil, Turquia — se dedicam à agricultura, uma tradição que dura há muitos milénios, todos os que trabalham na indústria e nos escritórios são empregados que estão bem vigiados. Pagamos impostos ao Estado e renda aos senhorios para podermos adquirir o sossego. Este é, aliás, um negócio que continua de vento em popa.

Todavia, o trabalho moderno tem muito piores implicações. As pessoas não só trabalham como têm tarefas. Cada um tem uma tarefa a cumprir, o que equivale a produção diária. Mesmo quando a tarefa não nos dá muito que fazer (o que praticamente não acontece), a monotonia da sua obrigatoriedade esgota a nossa potencialidade de divertimento. O emprego significa o aluguel das energias de uma pessoa por um limite de tempo razoável. E por mais engraçada que a tarefa seja, aquilo que tem de ser feito durante quarenta horas por semana, já não falando das condições em que tem de ser executado, é somente um fardo. O objectivo são os lucros dos proprietários que não contribuem em nada para o projecto. Isto é o verdadeiro mundo do trabalho: um trabalho burocraticamente impudente, sexualmente devastador e discriminatório, com os chefes cabeças ocas a explorar e a escapar dos seus subordinados, se for caso disso, bem entendido. O capitalismo na vida real suborna aquele que mais produz por exigência dum controlo central.

A degradação que muitos trabalhadores experimentam é a condição imposta pela denominada «disciplina». Foucault classificou, de modo simples e satisfatório, este fenómeno de «complexado». A disciplina consiste na totalidade do tempo estipulado no emprego. Por outras palavras, cumprir sem sem ficar isento da vigilância do trabalho corrompido, do trabalho forçado, da produção contigente, etc. A disciplina é aquilo que a fábrica, o escritório e a empresa partilha com a prisão, a escola e o hospital psiquiátrico. É uma coisa historicamente original e terrível. Muito para além das capacidades de alguns ditadores demoníacos como Nero, Gengis Khan e Ivan «o terrível». Para todos os seus maléficos propósitos, nunca dispuseram do mecanismo para o controlo dos seus súbditos tão perfeito como aquele de que dispõem os modernos déspotas. Disciplina é o diabólico modo moderno de controlo. É uma inovadora intrusão que necessita de ser interditada na primeira oportunidade.

O divertimento é o oposto do trabalho.

O divertimento é sempre voluntário. Quando é forçado, é trabalho. É axiomático. Bernie de Koven definiu o divertimento como uma «suspensão de consequências». O que não é aceitável se significar que o divertimento não tem consequências. Jogar e dar são hermeticamente relativos, são procedimentos e facetas transaccionais do mesmo impulso, o instinto do divertimento. Ambos partilham um desprezo aristocrático pelos resultados. O jogador ganha alguma coisa quando joga. É por isso que ele joga. Mas o prémio é a experiência obtida pela actividade — seja ela qual for. Alguns estudantes atentos ao divertimento, como Johan Huizinga (Homo Ludens) definem o jogo como uma acção onde se seguem regras. Respeito a erudição de Huizinga, mas rejeito os seus constrangimentos. Há inúmeros bons jogos — xadrez, basquetebol, monopólio, «bridge» — que têm regras, porém, existe no divertimento muito mais coisas do que aquilo que existe nesses jogos. Preservação, sexo, dança, viagens — estas práticas não possuem regras mas não deixam por isso de poderem ser divertimento. Podemos jogá-las com regras, mas, pelo menos, sem ser imperioso estabelecê-las com antecedência.

O trabalho troça da liberdade. O perfil oficial é que todos temos direitos e vivemos em democracia. Outros infelizes que não dispõem das mesmas liberdades que a nós se dispensa, são obrigados a viver num Estado omnipotente e inquisidor. Estas vítimas obedecem a ordens, não importa a sua arbitrariedade. A autoridade conserva-as debaixo de uma apertada vigilância. O Estado controla até ao mais pequeno pormenor a vida de cada um. Os informadores fazem regularmente relatórios para as autoridades. Os guardas encarregues do controlo somente entregam os seus relatórios aos superiores, sejam «públicos» ou «privados». A dissidência e a desobediência são punidas. Tudo isto é suposto ser uma má coisa.

Obviamente que é de fato péssimo e trágico viver em semelhante sociedade. Todavia, o que acabámos de relatar é também a descrição do emprego moderno. Os liberais, conservadores e «libertarianos» que se queixam do totalitarismo são fonéticos e hipócritas. Existe tanta liberdade numa moderada ditadura desestalinizada como num ordinário local de trabalho americano. A hierarquia e a disciplina no escritório ou na fábrica é idêntica àquela que encontramos na prisão ou num convento. Na verdade, como Foucault e outros mostraram, prisões e fábricas nasceram ao mesmo tempo e os seus membros imitam conscientemente as técnicas de controlo um do outro. Um trabalhador é um escravo temporal. O patrão determina as horas a que tens de entrar, quando é que tens de sair e o que tens de fazer durante esse espaço de tempo. Ele decide a quantidade de trabalho que tens de fazer e a rapidez em que o realizas. Ele é livre para te controlar, até para te humilhar, guiar e se ele achar necessário, escolhe a roupa que deves vestir ou quantas vezes poderás ir à casa de banho. Com algumas excepções, pode despedir-te com ou sem causa alguma. Ele tem os seus espiões e supervisores em cima de ti e possui um processo de cada trabalhador. E, se o trabalhador comete um acto de «insubordinação», como se ele fosse uma criança má, não só o despede, como também o desqualifica para futuros empregos. É claro que as crianças recebem o mesmo tipo de tratamento em casa e na escola, justificado pela sua imaturidade.

O que dirão estas crianças sobre os seus pais e os professores que trabalham?

A maioria das mulheres e dos homens têm que estar acordados durante décadas das suas breves vidas para conquistarem os seus «salários-marmitas». Não é ilusório denominar o nosso sistema de democracia, capitalismo ou melhor ainda de industrialismo, mas o seu verdadeiro nome é fascismo fábrica e oligarquia de ofício. Quem afirmar que estas pessoas são livres está a mentir ou é estúpido. Tu és aquilo que fazes. Se fazes coisas chatas, estúpidas ou monótonas, acabarás chato, estúpido e monótono. A existente rastejante «cretinização» é revelada pelo trabalho mais do que, inclusive, pelo triste mecanismo da televisão e da educação. Um povo que se encontra arregimentado, habilitado para o trabalho pela escola, colocado entre parêntesis pela família e finalmente no lar para a terceira idade, está habituado à hierarquia e psicologicamente escravizado. As suas aptidões à autonomia encontram-se tão atrofiadas que tem medo do que possa significar a liberdade. Cada membro desse povo transporta para dentro da família a sua treinada obediência no trabalho iniciando, deste modo, a reprodução do sistema em diferentes caminhos: políticos, culturais e outros.

Uma vez esvaziada no trabalho a vitalidade do povo, os indivíduos ficam aptos para se submeterem em todas as coisas à hierarquia e ao saber dos peritos. Uma vez submetidos, as pessoas estão prontas a serem usadas.

Estamos tão ligados ao trabalho que nem sabemos o mal que nos faz. Temos que confiar nos observadores exteriores de outros tempos ou culturas para apreciar a extremidade e a patologia da nossa presente atitude. Weber queria-nos comunicar alguma coisa quando referiu a semelhança existente entre o trabalho e a religião — o Calvinismo (4). Passados quatro séculos, emerge hoje apropriadamente rotulado de culto. Teremos que trazer até nós a visão da antiguidade para colocar o trabalho na perspectiva exacta. Os nossos antepassados viam o trabalho tal como ele é. O capitalismo recebeu a bênção dos seus profetas.

Vamos pretender, por um momento, que o trabalho não nos prejudica. Vamos esquecer que o trabalho não afecta a formação do nosso carácter. Vamos fingir que o trabalho não é, nem chato, nem cansativo, nem humilhante. Mesmo assim, o trabalho irá troçar das nossas aspirações humanistas e democratas e ocupar muito do nosso tempo. Sócrates disse que o trabalho manual faz de nós maus amigos e maus cidadãos porque não temos tempo para cumprir as responsabilidades da amizade e da cidadania. Ele tinha toda a razão. Por causa do trabalho, pouco importa o género ou tipo, estamos sempre a olhar para o relógio. A única coisa «livre», a que chamamos «tempo livre», é o tempo que nada custa ao patrão. Aquilo a que designamos «tempo livre» é, a maior parte das vezes, o momento em que nos preparamos para voltar, ir e retomar ao trabalho e dele recuperar. «Tempo livre» é eufemismo, considerando o fator produtivo. Não só as despesas de transporte, como também o tempo que levamos para chegar ao trabalho, são despesas que nós suportamos e tempo gratuito que nos é roubado. Não foi por acaso que Edward G. Robinson, num dos seus filmes de «gangsters», exclamou: «O trabalho é para os 'marrões'!».

Platão e Xenofonte atribuem a Sócrates, e obviamente partilham com ele, a opinião de que o trabalho provoca efeitos destrutivos no trabalhador como cidadão e ser humano. Heródoto identificou a desobediência ao trabalho como uma contribuição da cultura clássica Grega no seu mais feliz momento. Cícero declarou que «quem trabalha por dinheiro vende-se e coloca-se na categoria de escravo». A sua candura hoje é rara. No entanto, as sociedades primitivas contemporâneas que costumamos olhar de cima produziram porta-vozes que esclareceram os antropólogos do Ocidente. Nas palavras de Pospisil, os Kapauku do Oeste do Irian têm um sentido de equilíbrio na vida. Por isso, só trabalham dia sim, dia não, sendo o propósito do dia de «folga» o de «recuperar a energia e a saúde perdidas». Os nossos antepassados, ainda no século XVIII, embora já estivessem bem avançados no caminho para a nossa realidade de hoje, pelo menos tinham consciência daquilo que nós esquecemos e que é o ponto vulnerável da industrialização. A sua devoção religiosa à «Segunda-Feira Santa», que deste modo estabelecia a semana dos cinco dias (150 a 200 anos anteriormente à sua consagração na lei), foi o desespero dos donos das primeiras fábricas. Resistiram durante muito tempo ao toque do sino, o antecessor do relógio de ponto. De fato, foi preciso substituir, ao longo de uma geração ou duas, os homens adultos por mulheres habituadas à obediência e crianças que era possível moldar a condizer com as necessidades da indústria. Mesmo os camponeses explorados do «antigo regime» conseguiram recuperar uma parte substancial do trabalho que pertencia aos seus senhorios. Segundo Lafargue, 1/4 do calendário dos camponeses de França eram domingos e feriados. E as figuras de Chayanov das aldeias da Rússia Czarista (as quais não constituíram exactamente uma sociedade progressista) demonstram igualmente que 1/4 ou 1/5 dos dias do campesinato eram dedicados ao repouso. Os Mujiques admirar-se-iam com o fato de nós só trabalharmos. E nós deveríamos fazer o mesmo.

Para entendermos a enormidade do estrago, proponho que consideremos as antigas condições humanitárias quando o homem vadiava como caçador numa sociedade sem governo, ou sem dono de património. Hobbes suspeita que a vida era uma luta constante pela (sobre)vida, uma vida imunda, bruta e curta. Uma guerra furiosa contra a natureza áspera e com a morte a aguardar os mais fracos ou aqueles que não são capazes de enfrentar a luta. Na actualidade isto é usado para meter medo às comunidades para que não se habituem a viver sem governantes. Tal como acontecia na Inglaterra de Hobbes, num período de guerra civil, quando este escreveu, em 1657, «Leviathan, or the Matter, Form and Power of a Commonwealth» (Leviatão, ou a matéria, forma e poder do Estado). Os compatriotas de Hobbes tinham encontrado formas alternativas de vida, particularmente na América do Norte, mas a compreensão de outras maneiras de viver era muito remota.

(As classes mais desfavorecidas, aqueles que se encontravam mais próximos das condições dos aborígenes da América do Norte, compreenderam-nas melhor e acharam-nas atractivas. No século XVII, os ingleses que desertaram ou que tinham sido capturados, recusaram retomar ao seu país de origem.) «A sobrevivência do mais forte» — a versão de Thomas Huxley do Darwinismo — era uma avaliação muito mais correcta sobre a realidade da situação económica na Inglaterra Vitoriana do que a da selecção natural, uma evolução facultativa, como Kropotkine provou no seu livro «A Ajuda Mútua». Kropotkine sabia o que estava a dizer. A sua condição de cientista geógrafo e a oportunidade involuntária para realizar esses estudos quando foi exilado na Sibéria, permitiram essa prova científica. Como algumas teorias sociais e políticas referem, a história que Hobbes e os seus antecessores contaram foi, na realidade, uma autobiografia irreconhecível.



No artigo intitulado «The Original Affluent Society» (Idade da Pedra, Sociedade da Abundância), o antropólogo Marshall Sahlins ao estudar os colectores de caça fez explodir o mito Hobbesiano. Os colectores de caça trabalham muito menos do que nós. Além disso, é difícil distinguir esse trabalho daquilo que nós consideramos hoje como divertimento. Sahlins diz que o «trabalho» dos caçadores e colectores em busca de alimento é intermitente e melhor do que o trabalho permanente. O descanso é abundante. Ao contrário da maioria de nós, dormem durante o dia. O trabalho que fazem — trabalham uma média de 4 horas por dia e supondo que aquilo que fazem é aos nossos olhos trabalho —, são esforços que parecem ser efectuados com habilidade e que provocam a evolução da capacidade física e intelectual. O trabalho indiferenciado em grande escala, como disse Sahlins, é impossível. Este tipo de trabalho (como modernamente também se designa, não qualificado), só se tomou possível com a industrialização.

Assim, a definição de Friedrich Schiller sobre o divertimento, é satisfatória. Para ele, o divertimento é a única ocasião em que o Homem realiza a sua capacidade humanitária ao dar pleno «divertimento» a ambas as partes da sua dupla natureza: pensar e sentir. Como ele afirmou, «o animal só trabalha quando necessita de alimentos e diverte-se quando satisfaz essa necessidade». (Uma versão moderna, de Abraham Maslow — indecisamente crescente —, é a contraposição entre a deficiência e a motivação da produtividade). Divertimento e liberdade são, aos olhos da produção, objectos que se fundem um no outro.

Mesmo Marx, que pertence (por todas as suas boas intenções) ao panteão produtivo, observou que o domínio da liberdade não principia enquanto o trabalho sob a coação da necessidade e da utilidade externa existir. Nunca chegou a conduzir claramente esta afortunada circunstância, à abolição do trabalho. É um pouco anómalo, afinal, ser pró e anti-trabalhador, mas nós podemos sê-lo. A aspiração para ir atrás ou à frente na vida é evidente em qualquer sociedade ou na história cultural da pré-indústria europeia, como o testemunha entre outros, M. Dorothy Georges na sua «England in Transition» (Inglaterra em Transição) e Peter Burke, no seu «Popular Culture in Early Modern Europe» (Cultura Popular no Início da Europa Moderna).

Também pertinente é o ensaio de Daniel Bell «Work and Its Discontents» (O Trabalho e os seus Descontentamentos), o primeiro texto, penso eu, que refere a revolta contra o trabalho. E, em tantas palavras, que se fossem compreendidas tornar-se-iam uma correcção importante ao volume onde se encontram reunidas, «O fim da ideologia». Nem os críticos, nem os sacerdotes repararam que «O fim da ideologia» de Bell, não quer dizer o fim da inquietação social, mas sim, o princípio de uma nova fase não constrangida e ignorante da ideologia. Foi Seymour Lipset, não Bell, que anunciou, ao mesmo tempo, no seu livro «Political Man» (Homem Político), que «os problemas fundamentais da revolução industrial foram resolvidos».

Como Bell realçou, a «The wealth of Nations» (A riqueza das nações) de Adam Smith, para além do seu evidente entusiasmo com o mercado e a divisão do trabalho, presta mais atenção ao pior lado do trabalho do que Ayn Rand ou os economistas de Chicago, ou qualquer outra referência moderna de Smith. Adam Smith observou que a compreensão da grande maioria dos homens é formada no local de emprego. «O homem que passa a sua vida executando funções (...) geralmente torna-se estúpido e ignorante, tão e mais estúpido e ignorante, quanto aquilo que o ser humano pode ser». Aqui, em poucas palavras, está a minha crítica do trabalho.

Em 1956, Bell identificou, na época dourada da imbecilidade de Eisenhower e da auto-satisfação americana, o não organizado, o não organizável e o mal estar dos anos 70 e, desde então, tudo aquilo que não se pode explorar é ignorado. E, uma das coisas que frequentemente se ignora é a revolta contra o trabalho. Não figura em nenhum texto escrito por economistas, tais como Milton Friedman, Murray Rothbard, Richard Posner porque, do ponto de vista destes senhores, a questão, como é costume ser afirmado no «Star Trek», «não conta».

Se estas objecções, feitas por amor à liberdade, não persuadiram os humanistas da urgência de mudança, há outras que não podemos menosprezar.

O trabalho é perigoso para a tua saúde. Na verdade, o trabalho é homicídio de um povo ou assassínio de uma comunidade. Directamente ou indirectamente, o trabalho irá matar a maior parte dos trabalhadores. Todos os anos morrem na USA, entre catorze mil e vinte e cinco mil trabalhadores vítimas de «acidentes» no trabalho e mais de dois milhões ficam deficientes. Registe-se que estes algarismos são estabelecidos por uma estimação conservadora, o que constitui uma aproximação insultuosa. Portanto, não calculam meio milhão de casos de doenças originadas anualmente por via do trabalho. Dei uma vista de olhos num livro de medicina, com cerca de 1200 páginas, sobre doenças ocupacionais. O que desse livro retirei foram raspas superficiais. A estatística conta com casos evidentes, como os cem mil mineiros com doenças nos pulmões e dos quais quarenta mil morrem todos os anos. Uma fatalidade superior à sida [Nota: sida é o mesmo que AIDS — a tradução deste texto é de Portugal], por exemplo. Isto pode fazer-nos reflectir se tomássemos em conta a pretensão de alguns, quando se diz que a sida aflige particularmente os sexualmente pervertidos e que estes deveriam controlar os seus vícios. Porém, a actividade do mineiro é sacrossanta. O que a estatística não revela é o número de pessoas, mais de dez milhões, que têm as suas vidas encurtadas pelo trabalho. E isto é, portanto, homicídio. Pensamos nos médicos que se matam a trabalhar até aos 50 anos. Pensamos em todos aqueles que trabalham até à morte.

Mesmo que não morras, ou não fiques inválido dentro do trabalho, vais com todas as tuas forças trabalhar, voltar do trabalho, procurar trabalho, ou tentar esquecer o trabalho. A maioria destas pessoas são vítimas do automóvel e fazem disso uma actividade obrigatória. Temos também que contar com a poluição industrial, o alcoolismo e outras drogas e vícios que o trabalho incentiva. O cancro e as doenças de coração são modernas aflições, muitas das vezes provocadas directa ou indirectamente pelo trabalho.

Assim, o trabalho institucionaliza a nossa maneira de viver. As pessoas pensam que os cambojanos (e mais recentemente os habitantes do Ruanda, por exemplo) eram malucos quando se exterminavam uns aos outros, mas será que somos diferentes? Matamos pessoas a trabalharem para podermos vender (outro exemplo) «Big Macs» e «Cadillacs», aos sobreviventes. As nossas quarenta ou cinquenta mil pessoas que anualmente sofrem acidentes são vítimas, não mártires. Morreram por nada, ou morreram pelo trabalho. Contudo, o trabalho não é algo pelo qual valha a pena morrer.

Más notícias para os liberais: brincarmos às regulamentações é inútil neste contexto de vida e morte. A intenção era que a governamental «Occupational Health and Safety Administration» policiasse o cerne do problema, que é a segurança no local de trabalho. Mesmo antes de Reagan e o Tribunal Supremo a sufocarem, a OHSA era uma farsa. Com os níveis orçamentais da era Carter, anterior e «generosa», (em termos contemporâneos), um local de trabalho podia esperar a visita de um inspector da OHSA uma vez em cada quarenta e seis anos.

O controlo da economia por parte do Estado não é solução. O trabalho é, (se ele é alguma coisa), muito mais perigoso nos estados socialistas do que aqui. Milhares de trabalhadores russos morreram ou ficaram feridos na construção do metro de Moscovo. Há histórias decorrentes sobre desastres nucleares soviéticos que foram abafados e que fazem parecer Times Beach e Three Mile Island exercícios anti-aéreos de escola primária. Por outro lado, a desregulamentação que está na moda nos dias que correm não fará melhor e provavelmente irá doer. Do ponto de vista da saúde e da segurança, por exemplo, o trabalho atravessou a sua fase mais tenebrosa nos dias em que a economia mais se aproximou do laissez-faire. Historiadores como Eugene Genovese afirmaram de forma persuasiva que os trabalhadores de fábrica assalariados da América do Norte e da Europa estavam numa pior situação do que os escravos das plantações do Sul. Do ponto de vista da produção, qualquer novo arranjo das relações entre burocratas e homens de negócios pouca diferença parece fazer.

Uma tentativa séria de impor até os padrões bastante vagos que teoricamente podem ser impostos pela OHSA, provavelmente iria provocar o colapso da economia. Aparentemente, aqueles que os deveriam impor sabem disso, visto que nem sequer tentam interceder junto da maior parte dos infractores.

O que até aqui disse não deve ser controverso. Muitos trabalhadores estão fartos do trabalho. Há altas e crescentes taxas de absentismo, desacatos, roubos e sabotagens praticados por empregados, greves selvagens e uma tendência generalizada para «rentabilizar» o trabalho ao máximo. Talvez estejamos a encaminhar-nos em certa medida para uma rejeição consciente e não apenas visceral do trabalho. E mesmo assim, a impressão dominante, generalizada entre os patrões e os seus agentes, mas também muito divulgada entre os trabalhadores, é que o trabalho é inevitável e necessário.

Eu discordo. É hoje possível abolir o trabalho e substitui-lo, na medida em que sirva para fins positivos, por uma panóplia de actividades de um tipo novo. A abolição do trabalho requer uma abordagem sob dois pontos de vista distintos. O quantitativo e o qualitativo. No que diz respeito ao aspecto quantitativo, temos de reduzir drasticamente a quantidade de trabalho que está a ser feita. Presentemente, a maior parte do trabalho é inútil ou pior do que isso, por conseguinte, deveríamos simplesmente ver-nos livres dele. Por outro lado — e penso que este é o cerne da questão e o novo ponto de partida revolucionário —, teremos que agarrar no que é importante fazer e transformar essa actividade numa agradável variedade de divertimento, arte e passatempo. Não se distinguindo de outros prazeres, excepto que eles acontecem para chegar a produtos finais úteis. Certamente esse pormenor não os deverá tornar menos atractivos. Aí todas as barreiras artificiais do poder e da propriedade poderão cair. A criação poderá tornar-se recriação. E todos nós poderemos deixar de ter medo uns dos outros.

Não estou a sugerir que muitos trabalhos possam ser salvos desta maneira. Por outro lado, não vale a pena salvar a maioria deles. Hoje, só alguns trabalhos servem para alguma coisa e — independentemente da defesa e reprodução do sistema de trabalho —, só uma fracção reduzida do trabalho realizado serve um propósito útil.

Há trinta anos atrás, Paul e Percival Goodman avaliaram em somente 5% o trabalho realizado — e se a estimativa for correcta agora, a percentagem diminuiu — cobrindo as nossas necessidades de alimento, vestuário e abrigo. Estas estimativas são somente uma adivinha de intelectuais, mas o ponto fiável está claro: directamente ou indirectamente, muitos trabalhos servem um desígnio improdutivo de comércio ou controlo social. Podemos libertar milhares de vendedores, soldados, gerentes, bófias, corretores, padres, banqueiros, advogados, académicos, senhorios, guardas e todos aqueles que trabalham para eles.

Quarenta por cento destes trabalhadores são brancos e a maioria faz trabalhos fastidiosos e estúpidos que jamais em tempo algum foram forjados. Todos concordarão que inúmeras companhias de indústria, de seguros, da banca, de habitações, por exemplo, não servem para nada a não ser para um enredo de papelada, um extraordinário aumento das fortunas privadas de alguns e servirem a uma minoria privilegiada de «polícia social». Não é um acidente que o chamado terceiro sector (serviço público) estagna e o sector primário (agricultura) está em vias de desaparecer. E, como o trabalho não é necessário — excepto para aqueles que nele mandam — os trabalhadores são deslocados do relativamente útil para uma ocupação inútil. Para desta maneira assegurarem «a ordem pública». Qualquer coisa é melhor do que nada. É por isso que não podes ir para casa só porque acabaste mais cedo o trabalho. Eles querem o tempo que compram, o suficiente para que tu sejas propriedade deles, mesmo que dele não necessitem. De outro modo, como se compreenderá que o tempo de trabalho não tenha sensivelmente diminuído nos últimos cinquenta anos?

Da próxima vez vamos levar para o trabalho de produção um carniceiro esperto. Acaba a produção de guerra, o poder nuclear, os alimentos de plástico e os desodorizantes higiénicos e, sobretudo, a indústria automóvel sobre a qual vale a pena falar. Um automóvel ocasional Stanley Steamer ou o Model T pode servir, mas os carros eróticos de que as bestas de Detroit e de Los Angeles dependem, está fora de questão. Sem mesmo o tentarmos, já resolvemos praticamente a crise energética, a crise ambiental e equacionámos outros problemas sem solução aparente.

Finalmente, temos que acabar com o trabalho onde as horas de laboração são de longe as mais cumpridas, as mais mal pagas e do mais enfadonho que há por aí. Estou também a referir-me às donas de casa que fazem o trabalho de casa e tomam conta das crianças, enquanto o marido está a trabalhar. Abolindo o trabalho assalariado e realizando o desemprego total, podemos destruir a divisão sexual da lida doméstica. Como sabemos, a família nuclear é uma adaptação inevitável imposta pelo regime do «salariato» para a divisão do trabalho. Quer tu gostes ou não, tal como as coisas se têm passado durante o último século, ou dois, é economicamente razoável para o homem levar para casa o toucinho e para a mulher fazer o trabalho sujo oferecendo ao homem um céu num mundo desprovido de coração. Ao mesmo tempo, as crianças são arrebanhadas para campos de concentração de jovens chamados «escolas». Primeiramente, para as manter afastadas das saias das mães, mas, no fim de contas, para adquirirem o hábito da obediência e da pontualidade que tanto jeito fazem a um trabalhador. Porém, se estás com a pretensão de te desembaraçares do patriarcado, procura desembaraçar-te da família nuclear, cujo trabalho de sapa sem direito a salário, na opinião de Ivan Ilich, viabiliza o sistema do trabalho que o torna necessário. O que acompanha esta estratégia anti-nuclear é a abolição da infância e o encerramento das escolas. Neste país existem mais estudantes do que trabalhadores a tempo inteiro. Precisamos das crianças como professores e não como estudantes. As crianças têm muito a contribuir para a revolução lúdica porque sabem brincar melhor que os adultos. Os adultos e as crianças não são idênticos, mas pela interdependência acabarão por tornar-se iguais. Só a brincadeira pode lançar a ponte sobre o abismo que separa as gerações.

Ainda não mencionei sequer a possibilidade de reduzir drasticamente o pouco trabalho que resta através da automatização e da cibernética. Todos os cientistas, engenheiros e técnicos, uma vez dispensados de se preocuparem com a investigação bélica e a necessidade de os seus produtos se tornarem obsoletos, deverão divertir-se a descobrir meios de eliminar a fadiga, o tédio e o perigo de actividades, tais como o trabalho mineiro. Sem dúvida, encontrarão outros projectos para se divertirem. Talvez venham a construir sistemas de comunicação multimédia à escala global e acessíveis a toda a gente, ou a fundar colónias no espaço. Talvez. Eu próprio não sou entusiasta das coisas inúteis. Eu não gostaria de viver num paraíso de carregar no botão. Não quero que escravos robotizados façam tudo; também eu quero fazer coisas. Na minha opinião, há um lugar para a tecnologia que economiza o trabalho, mas esse lugar é de pequenas dimensões. Os registos históricos e pré-históricos não são propriamente animadores. Quando a tecnologia de produção passou da caça e recolha para a agricultura, e daí para a indústria, o trabalho aumentou, ao passo que as habilidades e autodeterminação decresceram. O desenvolvimento ulterior da industrialização tem acentuado o que Harry Braveman chamou a degradação do trabalho. Os observadores inteligentes sempre se deram conta disso. John Stuart Mill escreveu que todas as invenções alguma vez delineadas para reduzirem a mão de obra nunca pouparam um momento de trabalho que fosse. Karl Marx escreveu que «seria possível escrever um historial das invenções feitas desde 1830 com o único propósito de fornecer o capital com armas contra as revoltas da classe operária». Os entusiastas da «tecnofilia», tais como Saint-Simon, Comte, Lénine, B.F.Skinner também foram autoritários a toda a prova, ou seja, tecnocratas. Deveríamos ser mais do que cépticos no que diz respeito às promessas dos místicos computacionais. Eles trabalham como cães e algo me diz que, se for por eles, o mesmo acontecerá a nós outros. Mas caso eles tenham quaisquer contribuições particulares mais prontamente subordinadas às necessidades humanas que à corrida à alta tecnologia, porque não dar-lhes ouvidos?

O que eu gostaria realmente de ver acontecer é a transformação do trabalho em jogo. Um primeiro passo será descartarmos as noções de «emprego» e «ocupação». Mesmo as actividades que já tenham algum teor lúdico perdem a maior parte deste ao serem reduzidos a empregos que certas pessoas, e apenas essas pessoas, são obrigadas a executar sem poderem fazer mais nada na vida. Não será esquisito que os operários agrícolas se esfarrapem a trabalhar nos campos, ao passo que os seus amos com ar condicionado vão para casa todos os fins de semana dedicarem-se à «bricolage» nos jardins respectivos? Num sistema de festa permanente veremos a idade áurea do diletante que fará o Renascimento empalidecer com vergonha. Não haverá mais empregos, apenas coisas para fazer e pessoas para as fazer.

Como Charles Fourier demonstrou, o segredo da transformação do trabalho em brincadeira consiste em fazer com que nas actividades úteis se aproveite tudo o que várias pessoas em alturas várias realmente gostam de fazer. Para possibilitar que algumas pessoas possam fazer as coisas de que gostem será suficiente erradicar as irracionalidades e distorções que conspurcam essas actividades quando elas são reduzidas a trabalho. Eu, por exemplo, gostaria de ensinar um bocado (não em demasia), mas não quero estudantes compulsivos, nem gosto de lamber as botas a pedantes patéticos para assegurar um ganha pão.

A seguir há um par de coisas que as pessoas gostam de fazer de vez em quando, mas não por demasiado tempo, e certamente não todo o tempo. Você pode ter gosto em tomar conta de crianças por umas horas para estar na companhia delas, mas não tanto como os pais das mesmas. Ao mesmo tempo os pais apreciam profundamente o tempo para eles próprios que você Ihes proporciona, embora ficassem inquietos se fossem separados da sua prole por demasiado tempo. São estas diferenças entre os indivíduos que tomam possível uma vida de jogo livre. O mesmo princípio aplica-se a muitas outras áreas de actividade, com relevo para as mais fundamentais. Assim, muitas pessoas gostam de cozinhar quando se dedicam seriamente a essa actividade nos seus tempos livres, mas não acontece o mesmo quando o fazem apenas para reabastecer corpos humanos para o trabalho.

Terceiro, e enquanto as outras coisas se mantenham inalteradas, algumas actividades que são insatisfatórias se forem exercidas por você mesmo, ou num ambiente desagradável, ou às ordens de um dono, tomam-se aprazíveis, ao menos por algum tempo, se essas circunstâncias forem alteradas. O mesmo irá provavelmente aplicar-se, até certo ponto, a todo o tipo de trabalho. Há quem multiplique a sua ingenuidade, geralmente desperdiçada, para transformar, o melhor possível, os trabalhos de estafa menos convidativos num jogo.

As actividades que atraem alguns, nem sempre atraem os outros, mas qualquer pessoa tem, no mínimo em potência, uma variedade de interesses e um interesse na variedade. «Tudo ao mesmo tempo agora», como quem diz. Fourier foi quem levou mais longe a especulação sobre as possibilidades de tirar proveito de expedientes aberrantes e perversos na sociedade pós-civilizada. A isso chamou «Harmonia». Segundo ele, o imperador Nero teria acabado por ser uma boa pessoa se, em criança, tivesse saciado o seu gosto pela carnificina trabalhando num matadouro. Crianças pequenas em que fosse notório o gosto em chafurdarem na porcaria poderiam ser agregadas em «pequenas hordas» para limpar as casas de banho e despejar o lixo, sendo os mais destacados agraciados com medalhas. Não defendo precisamente estes exemplos, mas sim o princípio em que se fundamentam, o qual me parece fazer muito sentido, como uma das dimensões de uma transformação revolucionária global. Não nos esqueçamos do pormenor que não é necessário pegarmos no trabalho tal como ele é hoje e dotarmo-lo com as pessoas certas, algumas das quais teriam de ser, sem dúvida, pervertidas. Se a tecnologia é para aqui chamada é menos para automatizar o trabalho até à sua inexistência, do que para abrir novos espaços para a (re)criação. Até certo ponto, poderemos querer voltar ao artesanato, o que William Morris considerou ser um resultado provável e desejável de uma revolução comunista. Assim, a arte seria recuperada das mãos dos «snobs» e coleccionadores, seria abolida enquanto departamento especializado ao serviço de um público de elite e as suas qualidades de beleza e criatividade seriam devolvidos à vida plena da qual foram subtraídos pelo trabalho. É elucidativo lembrarmo-nos do fato que os vasos gregos aos quais escrevemos odes e que exibimos em vitrinas de museu foram usados, no seu tempo, para guardar o azeite. Duvido que os nossos artefatos do dia a dia tenham um futuro assim tão glorioso, se é que têm algum. O que se passa é que não há nada a que se possa chamar progresso no mundo do trabalho; se houver alguma coisa, será precisamente o contrário. Não devemos fazer-nos rogados para surripiarmos ao passado aquilo que ele tem para nos oferecer, visto que os antigos não perdem nada e nós saímos enriquecidos.

A reinvenção da vida quotidiana pressupõe o transpormos os limiares dos nossos mapas. Em boa verdade, existem mais obras especulativas sugestivas do que a maioria das pessoas supõe. Para além de Fourier e Morris — e até umas amostras, aqui e ali, em Marx —, há ainda os escritos de Kropotkine, os sindicalistas Pelloutier e Pouget, anarco-comunistas antigos (Berkman) e contemporâneos (Bookchin). A «Communitas» dos irmãos Goodman é o exemplo acabado para ilustrar as formas que derivam de dadas funções (fins), e também há qualquer coisa para aprender com os arautos tantas vezes nebulosos da tecnologia alternativa — apropriada intermédia-convivencial, tais como Schumacher e especialmente Illich, uma vez que o leitor consiga desactivar os seus canhões de nevoeiro. Os situacionistas, tais como se encontram representados na Revolução da Vida Quotidiana de Vaneigem e na Antologia da Internacional Situacionista, são impiedosamente lúcidos, ao ponto de se tornarem hilariantes, mesmo que nunca tenham equacionado devidamente a continuidade do mando dos conselhos de trabalhadores no contexto da abolição do trabalho. No entanto, mais vale a incongruência destes do que qualquer versão existente do esquerdismo, cujos devotos se esforçam por serem os últimos heróis do trabalho, visto que, se não existisse o trabalho também não haveria trabalhadores e, sem trabalhadores, quem restava para a esquerda organizar?

Assim, os abolicionistas ficariam em grande medida por sua conta. Ninguém pode vaticinar o que iria resultar se fossem dadas largas ao potencial criativo bestificado pelo trabalho. Tudo pode acontecer. O problema da liberdade versus necessidade, objecto de debates infindáveis, com o seu pano de fundo teológico, resolve-se na prática, uma vez que a produção de valores utilitários tenha nas nossas vidas um espaço correspondente ao da consumação de uma actividade jocosa repleta de deleite.

A vida tornar-se-á um jogo, ou antes, muitos jogos, mas não o que é hoje — um jogo de «monopólio». Um encontro sexual que corra pelo melhor é o paradigma do jogo produtivo. Os seus participantes potenciam mutuamente os prazeres, ninguém soma pontos e todos ficam a ganhar. Quanto mais deres mais recebes. Na vida lúdica, o que o sexo tem de melhor irá transvasar para a maior parte da vida quotidiana. A generalização da brincadeira conduz aos prazeres sensuais da vida. O sexo, em contrapartida, pode tornar-se menos obsessivo e desesperado, mas mais jocoso. Fazendo as cartadas certas, todos nós podemos receber mais da vida do que nela investimos, mas só se jogarmos à defesa.

Nunca ninguém deveria trabalhar. Trabalhadores de todo o mundo... descansem!


Notas

(1) — Oblomovismo: comportamento de Oblomov, herói patético da novela de Goncharov. Autor que prefere contemplar e discutir o Universo, incluindo o seu próprio atributo, em vez de tomar parte activa na resolução dos seus próprios problemas e participar na vida. Stakhanovismo: uma ideologia na ex-União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), que tem por objectivo encorajar o trabalho duro e o mais rentável possível, seguindo assim o exemplo de Stakhanov, um mineiro dos anos 30 e 40, cujo padrão de produtividade ganhou fama.

(2) — «No final da guerra inter-imperialista de 1939-45, nasceu nos Estados Unidos da América um novo libertário! Em linguagem «snob» dizem-se, se possível com uma ponta de sotaque californiano, os «libertarianos». Esta corrente é essencialmente constituída por economistas que, tal como Milton Friedman, vão desenvolver as teorias de Oppenheimer contra a invervenção estatal na esfera económica. [...] É a partir da crítica do Estado-Providência que David Friedman dará uma definição do «libertarianismo»: A idéia central do «libertarianismo» é que as pessoas deveriam poder viver de acordo com os seus desejos. Rejeitamos completamente a idéia de que as pessoas devem ser protegidas à força contra elas mesmas» [...] Opondo-se a toda a intervenção estatal na esfera económica ou social são inimigos absolutos do socialismo de Estado. Estas tomadas de posição levaram os «libertarianos» a aliarem-se aos conservadores do Partido Republicano, sendo uma tal aliança justificada pela necessidade de uma união contra o comunismo mundial, e a de garantir o «laíssez faire» económico. A doutrina acaba, de fato, por conduzir a uma reinvenção, ou antes, a um aperfeiçoamento da sociedade capitalista. Aposta-se num deixar fazer total, por oposição a uma economia autoritariamente dirigida. [...] A guerra do Vietname e as revoltas estudantis favorecem, em 1969, a ruptura da aliança «conservadores-libertarianos», apesar de alguns destes últimos apelarem ao voto nas eleições em que Reagan foi eleito. A partir desta ruptura, o movimento estruturou-se, originando, entre outros, o «Partido Libertário» que concorre em quase todas as eleições que animam a vida política norte-americana». (M. Bakoufelier, in revista Maldição n.º 1 — 1986).

(3) — «Quaaludic»: de quaalude, um cândido nome para o sedativo hipnótico «methaqualone», conhecido na Europa por «Mandrax».

(4) — «Calvinismo»: religião fundada por J. Calvino — o terceiro homem da revolução protestante que nasceu em Noyon, perto de Paris, a 10 de julho de 1509. Pouco depois, influenciado pela reforma de Lutero, acreditou ter encontrado também evidentes contradições entre as «Sagradas Escrituras» e a teologia católica. Deste modo, em 1534 renunciou aos seus benefícios eclesiásticos e abandonou França para se refugiar na Suíça, onde escreveu «Da Instituição da Religião Católica». Com a sua doutrina redigida lançou-se à acção em Genebra onde triunfava a rebelião de Zwinglio. Muito mais intransigente do que Lutero e Zwinglio, não aceitou, como estes o fizeram, situar a sua religião ao serviço do Estado. Aquilo que tentou foi submeter o Estado à sua religião e para isso apresentou-se como representante de Deus. Compreendendo que estavam ameaçados de cair debaixo da intransigência teocrática de Calvino, os habitantes de Genebra ergueram-se contra ele e expulsaram-no. Calvino retirou-se para Estrasburgo, cidade onde casou com uma viúva chamada Idelette de Bure. Entretanto, os seguidores de Calvino tinham conseguido impor-se em Genebra, o que permitiu este de entrar como vencedor na cidade, da qual foi um autêntico rei e senhor até ao dia da sua morte, em 1564. O reinado de Calvino foi um reinado de terror. Possuía vigilantes de bairro que denunciavam todos quantos se opunham ou mostravm reticências em aceitar o calvinismo. A lista das vítimas de Calvino foi interminável. Entre os quais recordemos a terrível morte na fogueira do médico espanhol Miguel Servet, que ousou polemizar com ele. Foi, no entanto, Calvino que deu à doutrina do trabalho toda a sua importância no pensamento e na vida cristã. Fez dela o fundamento de uma ética social que exercerá profunda e durável influência, na Suíça, nos Países Baixos, na Inglaterra, na Escócia e nos Estados Unidos da América. O mandamento do trabalho tem, para ele, uma autoridade particular pelo fato do «Criador», ao promulgá-lo, se dar a si mesmo como exemplo. A ociosidade e a preguiça, assim como a blasfémia, são ofensas à majestade divina e é por isso que elas são «amaldiçoadas por Deus». A doutrina de Calvino encontra-se exposta no livro acima citado.

original: The Abolition of Work
Autor: Bob Black
Tradução: Abdoulie Sam Boyd e Lumir Nahodil
Editado em Lisboa em 1998 por «Crise Luxuosa»
Publicado originalmente nos EUA em 1985.
A versão original inglesa (e outros ensaios do autor) está acessível em «The Disenchanted Workers Union» ( http://www.cat.org.au/dwu/ ), com a seguinte referência:
Bob Black's 1985 essay, «The Abolition of Work» appeared in his anthology of essays, «The Abolition of Work and Other Essays», published by Loompanics Unlimited, Port Townsend WA 98368 [ISBN 0-915179-41-5]. The following disclaimer is reproduced from the verso of the title page: «NOT COPYRIGHTED. Any of the material in this book may be freely reproduced, translated or adapted, even without mentioning the source.»
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