segunda-feira, 22 de novembro de 2010
UTILITARISMO E JUSTIÇA -John Stuart Mill
Somos continuamente informados de que a utilidade é um padrão incerto que cada pessoa interpreta de forma diferente, e que não há segurança a não ser nos ditames não sujeitos a erro, imutáveis e indeléveis da justiça, que contêm a prova em si mesmos, e são independentes das flutuações da opinião. Supor-se-ia, a partir daqui, que em questões de justiça não poderia haver controvérsia; que, se a tomássemos como regra, a sua aplicação a qualquer caso em concreto nos deixaria com tão pouca dúvida como uma demonstração matemática. Isto está tão longe da realidade, que existe tanta divergência de opiniões e tanta e tão feroz discussão sobre o que é justo como sobre o que é útil para a sociedade. Não só diferentes nações e indivíduos têm noções diferentes sobre o que é a justiça como, na mente de um mesmo indivíduo, a justiça não é uma só regra, princípio ou máxima, mas muitas, que nem sempre coincidem nos seus ditames, e ao escolher entre elas ele é guiado ou por um padrão externo ou pelas suas preferências pessoais.
Por exemplo, há quem afirme ser injusto punir uma pessoa para servir de exemplo a outras; que a punição só é justa quando visa o bem da própria pessoa castigada. Outros defendem o exato oposto, afirmando que punir para seu próprio benefício pessoas que atingiram a idade do discernimento é despotismo e injustiça, pois se o que está em questão é apenas o seu próprio bem, ninguém tem o direito de lhe controlar a sua própria avaliação do seu bem; mas podem, com justiça, ser punidas para prevenir a ocorrência de mal a outros, sendo esta uma forma de exercício do direito legítimo de autodefesa. O Sr. Owen afirma neste caso que punir é, de todo em todo, injusto; pois o criminoso não criou o seu próprio caráter; a sua educação e as circunstâncias que o rodeiam fizeram dele um criminoso, e por essas ele não é responsável. Todas estas opiniões são extremamente plausíveis; e, enquanto a questão for simplesmente mantida no plano da justiça, sem descer aos princípios que lhe estão subjacentes e constituem a fonte da sua autoridade, sou incapaz de ver como qualquer um destes pensadores pode ser refutado. Pois, na verdade, cada uma das três partes das regras de justiça é, reconhecidamente, verdadeira. O primeiro faz apelo à reconhecida injustiça de escolher um indivíduo e sacrificá-lo, sem o seu consentimento, para benefício de outras pessoas. O segundo baseia-se na reconhecida justiça da autodefesa, e na reconhecida injustiça de forçar uma pessoa a conformar-se às noções de outrem quanto ao que é o seu próprio bem. O apoiante de Owen invoca o princípio reconhecido de que é injusto punir alguém pelo que não depende de si. Cada um triunfará enquanto não for obrigado a tomar em linha de conta quaisquer outras máximas da justiça além daquela que escolheu; mas assim que as suas diferentes máximas são postas em confronto, cada um dos contendores parece ter exatamente o mesmo para dizer em sua defesa do que os outros. Nenhum pode desenvolver a sua própria noção de justiça sem violar outra igualmente vinculativa. Estas são dificuldades; sempre foram reconhecidas como tal; e muitos dispositivos foram inventados mais para as contornar do que para as ultrapassar. Como refúgio para a última das três, os homens conceberam aquilo a que chamaram o livre-arbítrio; imaginando que não podiam justificar a punição de um homem cuja vontade está num estado inteiramente odioso a menos que se supusesse que chegara a esse estado sem influência de circunstâncias anteriores. Para escapar às outras dificuldades, um estratagema preferido tem sido a ficção de um contrato, mediante o qual num qualquer período desconhecido todos os membros da sociedade se terão comprometido a obedecer às leis, e terão consentido em ser punidos por qualquer desobediência às mesmas; dando assim aos legisladores o direito, que de outra forma se presume não teriam, de puni-los, quer para o seu próprio bem, quer para o bem da sociedade. Considerava-se que esta ideia feliz permitia eliminar a dificuldade, e legitimava o infligir da punição graças a outra máxima de justiça tradicional, volenti non fit injuria; não é injusto o que é feito com o consentimento da pessoa que se visa castigar. Mal preciso de assinalar que, mesmo que o consentimento não seja uma mera ficção, esta máxima não é superior em autoridade às que pretensamente vem substituir. É, pelo contrário, um exemplo instrutivo do modo descuidado e irregular como se desenvolvem os supostos princípios de justiça. Este princípio, em particular, começou obviamente a ser usado como auxiliar nas exigências vagas dos tribunais, que por vezes são obrigados a contentar-se com pressuposições muito incertas, em virtude dos males maiores que frequentemente decorreriam de qualquer tentativa da sua parte de ser mais exatos. Mas mesmo os tribunais não conseguem aderir à máxima de forma consistente, pois permitem que alguns compromissos voluntários sejam postos de parte como fraudulentos, e, por vezes, como resultantes de mero engano ou má informação.
Além disso, quando é admitida a legitimidade de infligir uma punição, quantas concepções contraditórias de justiça se manifestam ao discutir a proporção adequada de punição para as violações da lei. Nenhuma regra sobre este assunto se impõe tão fortemente ao sentimento primitivo e espontâneo de justiça como a lex talionis, olho por olho, dente por dente. Embora este princípio da lei judaica e maometana tenha sido em geral abandonado na Europa enquanto máxima prática, suponho que existe na maioria dos espíritos um secreto anseio por ele; e quando a retribuição se precipita acidentalmente sobre um criminoso precisamente sob essa forma, o sentimento geral de satisfação demonstrado revela como é natural o sentimento de que é aceitável pagar na mesma moeda. Para muitos, o teste da justiça na imposição de penas é o de que a punição deve ser proporcional ao crime; significando isto que deve ser exactamente medida pela culpa moral do culpado (seja qual for o padrão deles para medir a culpa moral); na perspectiva destes, a consideração de quanta punição é necessária para a dissuasão do crime nada tem a ver com a questão da justiça; enquanto há outros para quem essa consideração é tudo, que defendem não ser justo, pelo menos para o homem, infligir a um semelhante, quaisquer que sejam os seus crimes, uma qualquer quantidade de sofrimento para lá do mínimo necessário para o impedir de repetir, e a outros de imitar, a sua conduta incorreta.
Tomemos outro exemplo de um tema já abordado: Numa associação industrial cooperativa, será ou não justo que o talento ou a perícia dêem direito a uma remuneração superior? Do lado de quem responde negativamente, afirma-se que quem dá o melhor que pode merece o mesmo, e não deve, à luz da justiça, ser colocado numa posição de inferioridade por coisas de que não tem culpa; que as capacidades superiores encerram em si vantagens mais que suficientes, pela admiração que suscitam, a influência pessoal que exercem, e pelas fontes de satisfação que as acompanham, sem a necessidade de adicionar a estas uma maior fatia dos bens do mundo; e que, pelo contrário, a sociedade está obrigada em justiça a compensar os menos favorecidos por esta imerecida desigualdade de benefícios, e não a agravá-la. No lado contrário defende-se que a sociedade recebe mais do trabalhador mais eficiente; que, sendo os seus serviços mais úteis, a sociedade lhe deve uma retribuição maior por eles; que uma maior fatia do resultado conjunto é na verdade obra sua, e não lhe reconhecer o direito a ela é uma espécie de roubo; que se ele receber apenas o mesmo que os outros, pode apenas exigir-se-lhe, em justiça, que produza o mesmo, e dedique uma menor percentagem de tempo e esforço, proporcionais à sua eficiência superior. Quem decidirá entre estes apelos a princípios de justiça contraditórios? A justiça tem neste caso duas faces, que é impossível harmonizar, e os dois contendores escolheram lados opostos; um deles olha para o que seria justo que o indivíduo recebesse, o outro para o que seria justo que a comunidade lhe concedesse. Cada uma destas posições é, do seu próprio ponto de vista, incontestável; e qualquer escolha entre elas, com base na justiça, terá de ser completamente arbitrária. Só a utilidade social pode decidir a preferência.
Uma vez mais, quantos, e quão irreconciliáveis, são os padrões de justiça aos quais se apela ao discutir a distribuição da carga fiscal. Uma opinião defende que o pagamento ao estado deveria ser feito em proporção numérica aos meios pecuniários. Outros pensam que a justiça ordena o que designam de tributação progressiva; tomar uma percentagem maior daqueles que podem dispensar mais. No plano da justiça natural, poderia fazer-se uma boa defesa da ideia de ignorar completamente os meios, e tomar de todos a mesma soma absoluta (sempre que fosse possível fazê-lo): assim como os sócios de uma associação ou de um clube pagam todos a mesma quantia pelos mesmos privilégios, possam ou não fazê-lo com a mesma facilidade. Uma vez que a proteção da lei e do governo é (poderia dizer-se) concedida a todos, e é igualmente requerida por todos, não há qualquer injustiça em fazer que todos a comprem ao mesmo preço. É considerado justo, e não injusto, que um comerciante cobre a todos os clientes o mesmo preço pelo mesmo artigo, e não um preço que varie de acordo com o seu poder de compra. Esta doutrina, no que diz respeito aos impostos, não tem defensores, por estar em forte conflito com os sentimentos de humanidade dos homens e o seu entendimento da expediência social; mas o princípio de justiça que invoca é tão verdadeiro e vinculativo como os que podem ser invocados contra ele. Exerce, por isso, uma influência tácita na linha de defesa usada por outros modos de abordar a tributação. As pessoas sentem-se obrigadas a defender que o estado faz mais pelos ricos do que pelos pobres, como justificação para lhes tirar mais; embora isto não seja de facto verdade, pois os ricos seriam de longe mais capazes de se proteger a si mesmos, na ausência de lei ou governo, do que os pobres, e na verdade seriam provavelmente bem sucedidos em converter os pobres em seus escravos. Outros, no entanto, aceitam esta concepção de justiça a ponto de defender que todos devem pagar a mesma taxa por cabeça pela sua proteção (sendo cada pessoa de igual valor para todos), e uma taxa diferente pela proteção das suas propriedades, que é desigual. A isto respondem outros que a totalidade do que um homem tem é tão valioso para ele como a totalidade de outro. Não há outra maneira de sair destas confusões a não ser a utilitarista.
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