sábado, 11 de dezembro de 2010
Diógenes, Foucault e a prática da parrhesia(por Carlos Bernardi)
Diógenes de Sinope (400-325 a. C.) era um Cínico. Escrevi a palavra com letra maiúscula para diferenciá-la de cínico. Segundo o dicionário Houaiss a palavra entrou na língua portuguesa por volta do século XV. Além das acepções ligadas à corrente filosófica da antiguidade grega temos, também, as seguintes denotações derivadas por extensão de sentido: “que ou aquele que é dado a atos e/ou ditos imorais, impudicos, escandalosos; desavergonhado, debochado, sarcástico; que ou aquele que fala ou age com descaso, impudência, falta de escrúpulos; petulante, atrevido; que denota cinismo, desfaçatez, fingimento”.
Como veremos mais adiante, estas acepções vão de encontro com a prática Cínica da parrhesia descrita por Michel Foucault.
Fundado por Antístenes de Atenas, após a morte de Sócrates, o Cinismo inspira-se no modelo de comportamento Socrático, sua independência de caráter, mas muito pouco na elaboração filosófica efetuada por Platão. Muito pelo contrario. Os Cínicos desprezavam as artes, os ensinamentos, a matemática e as ciências naturais. Negavam a teoria das idéias de Platão. Consideravam-se cidadãos do mundo, não de uma determinada cidade ou região, por isso eram contra a guerra e a política. Eram, conseqüentemente, individualistas extremos. Viviam uma vida simples de mendicância, privando-se de quase tudo, exceto o absolutamente necessário para satisfazer suas necessidades. Desprezavam a religião tradicional grega, pois concebiam os Deuses como puro fruto de convenções.
Buscavam a real liberdade (eleutheria) eliminando as necessidades supérfluas. Tinham como virtude a parrhesia, liberdade da palavra, onde falavam tudo sem disfarce, com ironia e arrogância. A outra virtude era a anáideia, liberdade de ação, que podia levar, inclusive, à licenciosidade. Muito provavelmente estas duas características contribuíram para a moderna acepção da palavra.
O objetivo de vida dos Cínicos era a autarkeia, o bastar-se a si-mesmo.
Michel Foucault, em seu livro Fearless Speech (discurso destemido), composto por uma série de conferências pronunciadas na Universidade de Berkeley em 1983, trata do tema da parrhesia. É em relação a este conceito que Foucault irá estudar os Cínicos e suas relações com a vida pública.
O que vem a ser parrhesia? A palavra aparece pela primeira vez na literatura grega em Eurípides (484-407 a.C.) e é traduzida como fala franca (free speech em inglês; franc-parler, em francês). Parrhesiazomai é utilizar-se da parrhesia, e parrhesiastes é aquele que usa a parrhesia, ou seja, aquele que fala a verdade.
Etimologicamente significa "dizer tudo". O parrhesiastes é aquele que abre seu coração e mente completamente para outras pessoas, falando com franqueza.
A palavra parrhesia, então, refere-se a um tipo de relacionamento entre o falante e aquilo que ele diz. Pois, na parrhesia, o falante torna manifestadamente claro e óbvio que aquilo que ele diz é sua própria opinião. Ele faz isso evitando qualquer tipo de retórica que poderia ofuscar o que pensa. Pelo contrário, o parrhesiastes usa as mais diretas palavras e formas de expressão que ele pode descobrir. (Foucault, 2001, pág. 12)
A parrhesia está associada a uma certa situação social que aponta para uma diferença de status entre o falante e seu interlocutor, envolvendo, inclusive, risco de vida. Uma das provas ou mesmo a prova que o parrhesiastes está falando a verdade é justamente sua coragem em dizer o que está dizendo para quem está dizendo. Isso é interpretado como indicação das qualidades morais requeridas para saber a verdade e ter condição de transmiti-la. O fato de correr risco ou estar em situação de perigo pelo seu discurso é que torna um parrhesiastes um parrhesiastes, pois este "escolhe primariamente um relacionamento específico consigo mesmo: ele prefere ser um contador-de-verdade ao invés de um ser vivo que é falso consigo mesmo" (Foucault, 2001, pág.17). Porém, o parrhesiastes é sempre menos poderoso do que seu interlocutor. "A parrhesia vem de 'baixo', por assim dizer, e é dirigida para o 'alto'” (Foucault, 2001, pág. 18).
Foucault, por fim, resume a parrhesia como uma "atividade verbal na qual o falante expressa seu relacionamento verbal com a verdade, e arrisca sua vida porque reconhece que dizer a verdade é um dever para melhorar ou ajudar as outras pessoas (assim como a si-mesmo)" (Foucault, 2001, pág.19).
Se Antístines é o fundador do movimento Cínico, foi seu discípulo Diógenes de Sinope quem levou às últimas conseqüências seus idéias, praticamente dando nova força ao movimento.
Era através de seu rigoroso estilo de vida, uma vida extremamente simples, que Diógenes transmitia seus ensinamentos. Vivia numa grande barrica ou num grande vaso de barro, como retrata a pintura de Jean-Léon Gérôme (1824-1904), vestindo-se com trapos e vivendo de esmolas. Autodenominava-se "o cão", pois queria ter uma vida simples e livre como estes. Este é, além do mais, o significado da própria palavra cínico, que vem do grego kynikoi: semelhante a cachorro.
Na imagem vemos Diógenes em seu abrigo com seus companheiros. Ele está, além do mais, acendendo sua lamparina. É com ela que andava, durante a plena luz do dia, de um lado para o outro procurando os homens verdadeiros. Típica ironia Cínica. Para Foucault está é uma diferença marcante entre os Cínicos e Sócrates. Enquanto este último, através de uma técnica sinuosa, conduz de um entendimento ignorante, para uma compreensão da ignorância, o Cínico, num gesto de agressividade, como se estivesse em uma batalha, assume que sabe a verdade e deve comunicá-la a todos. Primeiro com seu próprio exemplo. Depois com ações e palavras.
Para provar que as necessidades básicas eram naturais, da mesma forma que comia na praça púbica, também se masturbava. Apenas lamentava que a fome não desaparecesse apenas esfregando a mão na barriga.
De todos os relatos sobre Diógenes, verdadeiros ou ficcionais, um dos mais conhecidos, que Foucault irá descrever como exemplo máximo de parrhesia, é seu encontro com Alexandre o Grande. Tendo possuído como tutor Aristóteles, Alexandre era um grande admirador e patrocinador dos filósofos, por este motivo, em sua passagem por Corinto, fez questão de procurar o Cínico. Pela manhã o Imperador encontra o filósofo recostado em sua abrigo. Dirigindo-se a ele Alexandre lhe pergunta: "Pede-me o que quiseres". Diógenes responde: "Não me faças sombra. Devolve meu sol".
Para Foucault este `é um claro exemplo de um dos tipos de parrhesia empregada pelos Cínicos, o diálogo provocativo. Foucault utiliza um trecho do 4º Discurso de Dio Chrysostom, Cínico da última metada do século I d.C. Neste discurso ele relata o diálogo entre Alexandre e Diógenes. Em vários momentos Alexandre exibia uma grande irritação e vontade de matar Diógenes ao que este responde:
Tudo bem. Sei que esta enfurecido e também é livre. Tens tanto a habilidade quanto a sanção legal de me matar. Mas serás corajoso o bastente para ouvir a verdade de mim, ou serás um covarde que preferirá me matar? (Foucault, 2001, pág. 128)
Por fim, Diógenes prossegue apontando três modos faultosos de um rei se comportar, que correspondem a três daimones que se deve conjurar: devoção à riqueza, devoção ao prazer físico e, por último, devoção à glória e ao poder político. O confronto com estes três daimones é o conselho Cínico final de Diógenes, cuja prática permite a Alexandre empreender uma guerra espiritual consigo mesmo. Segundo Foucault, o diálogo tem como objetivo "levar o interlocutor a internalizar esta luta parrhesiástica" (Foucault, 2001, pág. 133).
A pintura do artista francês Nicolas-André Monsiau (1755 - 1837) retrata o momento deste encontro.
Como praticado por Diógenes, a parrhesia corresponde ao conceito de Jung de confronto com a sombra. Este também possui uma dimensão política fundamental porque a conscientização e a luta com a sombra é o único caminho para se confrontar os demônios totalitários, como aponta Jung em suas reflexões sobre Hitler. Esta conscientização é muito importante neste momento em que se revivencia os 60 anos da 2ª Guerra, situação propícia para o reconhecimento dos três daimones que nos assombram, segundo a sabedoria de Diógenes.
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