segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Anarquismo e Marxismo-Uma história de amor e ódio:

Já se explicou as relações entre o anarquismo e o marxismo sob várias formas. Desde a personalidade de Marx até sua vida pessoal, passando também pela origem de classe dos anarquistas ou suas ligações classistas, esta relação sempre foi discutida de forma equivocada.
Isto é tão forte que observamos num texto dos mais inteligentes relacionado ao assunto se intitula: Karl Korsch, O Amigo Marxista do Anarquismo (...). A questão é tão emocional que mesmo aqueles que querem romper com o ódio passa a falar de outro sentimento: a amizade ou o amor. Sem dúvida, isto é fundamental para explicar a relação entre marxismo e anarquismo, mas não aplicando isto a Marx e Bakunin ou Marx e Proudhon e sim aos anarquistas contemporâneos. Proudhon e Bakunin, assim como Marx, viveram intensamente a luta operária do século 19 e acreditavam sinceramente que estavam com a razão e por isso não separavam sua crença intelectual de sua carga emocional elevada. Neste sentido, suas polêmicas eram não somente análises intelectuais corretas mas muitas vezes expressões de sentimentos ambíguos.
Ora, ninguém pode negar que Bakunin e Marx, e muitos outros eram revolucionários sinceros e se estivessem vivos hoje reavaliariam várias teses apresentadas por eles no passado e inclusive a relação com a outra corrente, sem poupar inúmeras críticas aos seus continuadores. O que Marx já havia começado a fazer! O que Bakunin diria hoje dos anarquistas contemporâneos que nada fazem de revolucionário? Talvez criasse a expressão anarco-conservadores ou lançaria o Manifesto Anarquista, parafraseando Marx e dizendo que no fundo, o velho e bom Marx era mais libertário do que ele pensava, e dedicaria um capítulo ao anarquismo pequeno-burguês, outro ao anarquismo crítico-utópico, outro, ainda, ao anarquismo romântico e assim por diante. Talvez pensem que estou falando grego, afinal os anarquistas lêem anarquistas e não Marx... Os anarquistas contemporâneos estão presos no tradicionalismo e são incapazes de analisar o marxismo devido a isto. Mesmo Daniel Guérin, que queria unir marxismo e anarquismo, dizendo que eles são irmãos gêmeos, não ultrapassou o tradicionalismo, pois para confirmar a possível união entre "los marxistas" e "los anarquistas" utilizou o método tradicionalista das citações de anarquistas, Marx e seus discípulos Rosa Luxemburgo e Trótski. Ao comentar Lênin, uma autoridade..., afirma que sua crítica não lhe retirava o seu valor! Lênin, o czar do marxismo!! Admirar tal figura não deixa de ser uma afronta ao espírito libertário e produto da falta deste espírito e do tradicionalismo reinante no anarquismo.
Os anarquistas tradicionalistas se contentam em tomar as dores de Proudhon e Bakunin, devido as investidas do malvado Marx, que era autoritário por "personalidade" e tinha ânsia pelo poder. As respostas virulentas de Bakunin, um ídolo dos anarquistas tradicionalistas, o pai fundador da religião anarquista, são esquecidas pelos seus devotos e até citadas muitas vezes para dizer que Marx é virulento!! Deus, preciso de ídolos!! São Bakunin, nos salve do diabo vermelho, Karl Marx! Os marxistas autoritários (Lênin e seguidores) utilizaram, com sua costumeira falta de criatividade, a idéia marxista das classes sociais para rotular o anarquismo de "pequeno-burguês", derivando mecanicamente, deste suposto caráter de classe, as idéias anarquistas, que, por conseguinte, deveriam ser atacadas. Mas não se contentaram com isso e foram mais longe, alguns chegando a falar do racismo de Bakunin... mas os anarquistas tradicionalistas não ficam atrás, pois muitos buscam no fundo do baú textos de Marx, distorcidos e citados de forma incompleta e descontextualizada, para dizer que este sim é um racista...
No entanto, se o marxismo autoritário não poderia nos fornecer muito mais do que isso, era de se esperar mais do anarquismo, mas seu tradicionalismo impediu qualquer avaliação crítica e aprofundada do marxismo. Tal incapacidade se revela, por exemplo, no desconhecimento da existência de diversos marxismos e também no não reconhecimento no caráter revolucionário e libertário de algumas das teses de Marx e alguns seguidores (diversos marxistas dissidentes do bolchevismo e do reformismo apontaram para o mesmo caminho que o anarquismo: a autogestão) e no aspecto fundamental contido em sua crítica do capitalismo.
Na verdade, Bakunin e Marx são dois grandes representantes dos oprimidos e por isso é preciso reconhecer a contribuição de ambos (e não só deles, mas de muitos outros, como, por exemplo, Proudhon, apesar de alguns de seus erros e também Rosa Luxemburgo, exaltada por Guérin, mas que ainda ficou presa ao ídolo do partido, mesmo lhe fazendo observações críticas). No entanto, hoje é preciso reconhecer que, tal como certa vez colocou Bakunin, o gênio de Marx criou um sistema racional de amplitude fantástica. Ele desvendou o processo de produção capitalista e o segredo da exploração da classe operária e isto é uma conquista insuperável do movimento libertário. Mas, se Marx fosse simplesmente o malvado que os anarquistas tradicionalistas dizem, como ofereceria contribuição tão grandiosa? Cabe ao anarquismo resmungar e virar as costas para Marx e aqueles que desenvolveram num sentido libertário suas concepções ou manter um diálogo vivo, aberto, sem os preconceitos que os tradicionalistas trazem devido seu sentimento de pena em relação "às vítimas de Marx", os pobrezinhos de Proudhon e Bakunin! Coitadinho deles! Vejam só no que o anarquismo tradicionalista transformou o espírito libertário: uma tradição semi-religiosa com seus mártires e perseguidos que se contentam em dizer qual o caminho para o paraíso e para o inferno, a velha oposição entre o bem e o mal, o bem é o anarquismo e o mal, o marxismo. O maniqueísmo de caráter religioso que acompanha o anarquismo tradicionalista é bem visível neste e em outros aspectos. O pensamento libertário deve se libertar dos ídolos, inclusive dos ídolos anarquistas.
A incapacidade de avaliar o marxismo por parte do anarquismo tradicionalista é apenas um produto de sua falta de aprofundamento teórico, sua estagnação intelectual, e de sua idolatria pelos velhos barbudos do século 19 (não todos é claro... pois Marx era barbudo...) e início do século 20.
Os conflitos entre Marx e Proudhon, e depois entre Marx e Bakunin, assim como os conflitos menores entre autoritários e tradicionalistas, são reproduzidos até hoje, inclusive com alguns anarquistas tradicionalistas e marxistas autoritários se prestando ao triste serviço de caluniar, deformar escritos, fazer uma arqueologia do racismo em seus adversários... Sem dúvida, o nível do debate decaiu bastante depois de Marx e Bakunin, e seus equívocos, que foram preservados e, o que é pior, ampliados pelos seus continuadores. Mas isto apenas deixa claro que se o reformismo marxista e o leninismo revolucionário-autoritário, burocrático, são nanicos perto do gigante Marx, o mesmo ocorre com Bakunin e os nanicos do anarquismo tradicionalista. E nós, vamos reproduzir isto? Não, mas também não devemos ficar idolatrando Marx ou Bakunin. Devemos reconhecer os méritos de ambos e ir além deles para concretizar o projeto que eles sonharam: a autogestão, e para fazer isto devemos abandonar o tradicionalismo.

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