segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011
Uma introdução ao Anarquismo de Mercado
O anarquismo de mercado pode ser considerado uma extensão e uma radicalização do liberalismo clássico. O liberalismo recebe muita publicidade negativa hoje em dia e, em sua maior parte, ela é imerecida - como na atual crise mundial, que é debitada na conta dos pobres liberais, embora os mesmos liberais há tempos já venham alertando para os problemas que as intervenções corriqueiras (que ocorrem a todo momento e são ignoradas, de alguma maneira) no mercado causam.
O liberalismo surgiu como uma reação a tudo que pragueja o mundo hoje em dia: às guerras e o militarismo, ao poder ilimitado dos governos, aos impostos, à sociedade de classes, às regulamentações que proibiam as pessoas de produzir. O liberalismo, por tudo isso, era o partido dos pobres e dos oprimidos, daqueles que defendiam que as pessoas tinham direito de produzir e manter os frutos do próprio trabalho, e não deixa de ser irônico que hoje em dia ele seja visto como uma ideologia à serviço dos ricos - embora sejam os adversários dos liberais que estejam se coçando para declarar o fim do livre mercado e dar bilhões e bilhões de dólares para os banqueiros.
De qualquer forma o liberalismo ganhou grande prestígio nos séculos XVIII e XIX, e levou às diversas revoluções que acabaram, entre outras coisas, com aquela coisa do poder real absoluto. Foi o liberalismo que tentou instituir os direitos iguais para todos e limitar ao máximo o poder de exploração do estado, cujas funções deveriam ser a de estrita defesa, nas palavras de John Locke, da vida, da liberdade e da propriedade, os direitos naturais do indivíduo.
Porém, os liberais clássicos não foram longe o suficiente na sua crítica ao poder do estado. É bem verdade que eles eram bastante sensíveis à ameaça apresentada por essa instituição, mas não tiraram as conclusões lógicas das suas críticas.
Por um lado, eles não perceberam que o aval deles a um "estado mínimo" era em si próprio imoral de acordo com os próprios princípios liberais, uma vez que o estado, para sua própria existência, necessariamente invade a liberdade e a propriedade dos cidadãos (através da cobrança de impostos).
Por outro, eles também não enxergaram que o estado é a máquina perfeita de exploração: por não ser limitado pelas normas comuns de convívio social (o respeito pela propriedade privada, a voluntariedade em vez da força), o estado é a ferramenta perfeita pela qual um grupo pode se beneficiar às custas dos outros. O estado pode não apenas tirar de uns e dar para outros, através de seus impostos, ele também pode controlar uns em favor de outros, através das suas leis.
Seu poder de monopólio combinado com seu poder de cobrar impostos também assegura que o estado vá ser cada vez mais exploratório, cobrando preços cada vez mais altos por serviços cada vez piores. Daí vemos as infinitas leis de hoje em dia, que não protegem senão os interesses de alguns, e a escalada da violência, inclusive (talvez principalmente) de policiais. Parece bem óbvio que o estado, embora devesse se limitar à defesa dos seus cidadãos, fracassou miseravelmente nessa função.
E é daí que surgem duas conclusões um tanto óbvias a esta altura: (1) o estado é uma instituição imoral, essencialmente anti-social e/ou ineficiente que, portanto, deve ser abolida; (2) suas funções indispensáveis devem ser executadas através de arranjos voluntários do mercado, sujeitos ao respeito pela propriedade privada. Estes são os princípios básicos do anarquismo de mercado - e de seus subgrupos.
(Ah, outra definição que já li dizia que o anarquismo de mercado é igual ao anarquismo normal, mas com melhores lojas. Se eu usasse essa definição, porém, o texto ficaria de certo modo reduzido.)
E quem defende isso?!
Bom, eu defendo. Várias outras pessoas também defendem e hoje em dia pode-se dizer que nós já enchemos uma Kombi. Evidentemente não foi sempre assim e a idéia teve que surgir em algum lugar. Ela foi apresentada de forma sistematizada pela primeira vez pelo economista liberal franco-belga Gustave de Molinari, em um ensaio chamado De la production de la securité, de 1849, onde ele escreveu:
Se existe uma verdade bem estabelecida na economia política, é esta:
Que em todos os casos, para todas as mercadorias que servem à provisão das necessidades tangíveis ou intangíveis do consumidor, é do maior interesse dele que o trabalho e o comércio permaneçam livres, porque a liberdade do trabalho e do comércio tem, como resultado necessário e permanente, a redução máxima do preço.
E esta:
Que os interesses do consumidor de qualquer mercadoria devem sempre prevalecer sobre os interesses do produtor.
Assim, ao seguirmos esses princípios, chegamos a esta rigorosa conclusão:
Que a produção de segurança deveria, nos interesses dos consumidores desta mercadoria intangível, permanecer sujeita à lei da livre competição.
De onde se segue:
Que nenhum governo deveria ter o direito de impedir que outro governo entrasse em competição com ele ou que requeresse que os consumidores adquirissem exclusivamente seus serviços.
Contudo, eu devo admitir que, até o presente momento, se tem evitado chegar a essa rigorosa implicação do princípio da livre competição.
Os liberais não eram um grupo homogêneo, claro. Em suas fileiras haviam desde os mais intervencionistas (como John Stuart Mill) até os defensores de um estado mínimo estrito (como Frédéric Bastiat) e os que falavam em favor do direito de recusa a se submeter ao estado (como Herbert Spencer). Tanto não eram um grupo homogêneo que dele saiu o radical Gustave de Molinari.
Mas, por mais radical que fosse, Molinari não se via como nada além de um liberal consistente. Não se via como "anarquista". Isso não impediu, porém, que gente saída das linhas anarquistas viesse a defender idéias bastante parecidas com as dele. Eu tenho em mente os expoentes do anarco-individualismo americano, como Lysander Spooner e Benjamin R. Tucker (dentre vários outros, mas esses são considerados paradigmáticos dentre os anarco-individualistas dos EUA).
Eles, bem ao contrário do que predominava no anarquismo europeu, decidiram colocar ênfase no respeito à propriedade privada (com algumas diferenças em certos casos, como na questão da propriedade da terra para Benjamin Tucker), no comércio e na soberania do indivíduo.
Lysander Spooner via no estado o maior violador dos direitos naturais de propriedade concebível. Spooner considerava o estado pouco mais que uma máfia, organizada com o propósito exclusivo de explorar as pessoas. Tucker tinha uma visão semelhante da instituição, embora não compartilhasse da crença nos direitos naturais. Apesar disso, ele considerava o estado uma instituição anti-social, criadora de "monopólios" que mantinham os indivíduos em opressão e miséria.
Tanto Molinari quanto os anarco-individualistas americanos não passavam de figuras obscuras no século XIX. Eles teriam ficado virtualmente esquecidos até hoje se não tivessem sido resgatados a partir dos anos 1950 pelos anarco-capitalistas, dos quais os mais conhecidos são Murray N. Rothbard e David D. Friedman.
Rothbard expôs sua defesa da concorrência entre produtores de segurança no livroPower and Market, de 1970, onde também detalhou todos os efeitos deletérios da intervenção estatal na economia. Em For a New Liberty, lançado ao mundo em 1973, ele apresentou a defesa moral da sociedade livre, baseada na propriedade privada e nas trocas voluntárias. David D. Friedman, filho do famoso economista Milton Friedman, por outro lado, apresentou em The Machinery of Freedom (1970) uma defesa pragmática da sociedade sem estado. Para ele, uma anarquia "capitalista" seria capaz de prover tanto segurança quanto liberdade para todos.
Hoje em dia há toda sorte de pessoas associadas com o "movimento libertário" (principalmente o americano) que defende uma variante ou outra do anarquismo de mercado (e, cabe adicionar aqui, eu uso o termo "anarquismo de mercado" de forma ecumênica, para abrigar todos os grupos que defendem a propriedade privada e a abolição do estado, a despeito de outras diferenças que tenham entre si. Se eu utilizasse meramente a expressão "anarco-capitalismo", eu estaria alienando uma grande parte do movimento que não se identifica com o rótulo por um motivo ou por outro).
Há, entre outros, os anarco-capitalistas (dentre os quais se destacam os rothbardianos), os geoanarquistas (que diferem dos demais em suas concepções sobre a propriedade da terra), os agoristas (rothbardianos com visões particulares sobre a estratégia para alcançar uma sociedade livre) e até mesmo os anarco-individualistas mais clássicos (que fazem um revival das teorias dos velhos anarquistas americanos). De forma geral, há diversas justificativas éticas para a sociedade anárquica: deontológicas, contratualistas, conseqüencialistas, egoístas ou baseando-se na ética da virtude. Ao gosto do freguês.
Ok, mas a teoria que essa gente toda defende é correta ou viável?
Acredite, o que não faltou até hoje foram críticas ao anarquismo de mercado. Alguns criticaram a teoria moral dos direitos naturais, que exclui definitivamente a existência de um estado (por ser definido, à moda weberiana, como instituição que detém o monopólio da jurisdição sobre certo território e o poder de taxação). Outros criticaram a viabilidade prática do sistema. Tentarei abordar rapidamente aqui as objeções mais comuns e suas respostas anarquistas convencionais. Isto não significa, obviamente, que o debate esteja encerrado ou que algum dos lados possui uma resposta definitiva:
O estado não é ilegítimo: Às vezes se argumenta que a autoridade estatal não é ilegítima, porque, ao permanecer na jurisdição do estado, o indivíduo dá seu consentimento implicitamente ao seu poder. O problema, segundo os anarquistas, é que não há qualquer consentimento, já que o estado não é dono de todo o território do país. Um argumento semelhante diz que o indivíduo consente à autoridade do governo ao participar de eleições ou se envolver de outras maneiras com o estado. Da mesma forma, o consentimento dado aí é dúbio, já que o próprio estado impõe as condições do acordo - que não pode nem mesmo ser desfeito, ao contrário dos contratos comuns.
Sem o estado, haveria uma guerra de todos contra todos: A objeção hobbesiana (referente ao filósofo inglês Thomas Hobbes) contra a anarquia surge ocasionalmente. Os anarquistas de mercado tendem a responder que a ausência de um estado não significa ausência de leis e que, se os indivíduos possuem uma tendência natural para a violência, a própria existência do estado seria impossível, já que ele também é composto por indivíduos.
Agências de segurança privadas entrariam em guerra: Um dos mais conhecidos argumentos contra a concorrência de provedores de defesa e segurança. E uma das respostas mais comuns é mostrar que as guerras seriam menos prováveis entre agências de segurança do que entre estados, já que as agências, ao contrário dos governos, arcam com todo o ônus de suas aventuras beligerantes.
As disputas não poderiam ser resolvidas definitivamente: É claro que surgiriam disputas legais entre as pessoas, mesmo com a inexistência de um estado. Os anarquistas tendem a defender que as pessoas poderiam contratar livremente serviços de arbitragem. No entanto, críticos argumentam que, nesse caso, não existiria uma instância superior final que fosse capaz de decidir os casos de uma vez por todas. Segundo eles, um sistema de concorrência entre árbitros privados teria como resultado infinitos recursos, sem ser possível chegar numa resolução final. Anarquistas, contudo, mantêm que bastaria que essas questões fossem resolvidas antecipadamente entre os árbitros ou que as decisões fossem delegadas a uma terceira parte neutra.
Anarquia de mercado é impossível, não há propriedade privada sem governo: Essa é uma crítica comum das linhagens não-individualistas do anarquismo. Mas é muito mais fácil apontar para o fato de que o mais improvável é que toda a propriedade se torne pública sem a existência de um corpo jurídico unificado. Basta que as pessoas, como hoje em dia, aceitem e respeitem geralmente a propriedade privada para que ela exista. A propriedade privada não existe por decreto governamental, mas porque ela é ideologicamente aceita pela população. Sendo assim, mecanismos privados de defesa da propriedade tenderão a emergir.
Surgiria um novo governo: Algumas críticas afirmam que haveria uma tendência concentradora na sociedade anárquica (ganhos de escala na produção de defesa e segurança) que faria com que surgisse um novo estado. Os anarquistas afirmam que isso, embora possível, é improvável, já que não se verifica no mercado a mesma concentração que há no caso do monopólio compulsório estatal.
A segurança é um bem público: Este é um argumento mais técnico, que diz que a produção de segurança não pode ser limitada àqueles que de fato usufruem dos serviços ofertados. Os argumentos anarquistas em resposta variam entre a negação de que haja problemas de bens públicos relevantes (isto é, os indivíduos internalizam todos os custos relevantes da segurança que recebem) ou afirmam que o estado não resolve o problema, já que em vez de falhas de mercado teríamos que lidar com falhas de governo.
Por que eu deveria me importar com tudo isso?
O status quo causa enorme fascinação no imaginário das pessoas, mas se pararmos por alguns momentos para considerarmos o histórico de pobreza e violência causadas pelos estados no mundo todo, nós percebemos que talvez seja de fato necessária uma alternativa radical que acabe com a discussão viciada que vigora hoje em dia.
No caso do Brasil, por exemplo, apesar dos continuados fracassos do governo em prover algo que ao menos lembre vagamente serviços de qualidade, os políticos continuam sendo vistos como messias a cada eleição que passa. E isso apesar dos números calamitosos em literalmente todas as áreas. Aqui, o desemprego chega a passar dos 15% (níveis de países em profunda depressão econômica) e é tido como natural pelas pessoas, que enxergam em concursos públicos a maior esperança de um futuro decente. Sem falar das estatísticas sofríveis em saúde e educação, e da violência galopante no país. Isso tudo nos deveria fazer parar para pensar por um minuto e talvez perguntar "Por que não acabar com isso tudo?".
De fato, se substituíssemos a mão pesada do estado pela mão invisível do mercado, poderíamos combater a maioria desses problemas, senão todos. Sem as regulações do governo, o desemprego cairia dramaticamente e a economia entraria numa espiral de desenvolvimento. Sem bancos centrais e a manipulação da moeda perpetrada por eles, crises seriam muito mais raras e brandas. Sem desemprego, pobreza e o inútil combate às drogas, a violência cairia consideravelmente. A segurança seria custeada voluntariamente, seus serviços tenderiam a melhorar e seu preço cair, ficando acessível a todos - ao contrário do cenário atual, em que não há segurança para ninguém. Não haveria mais a gritante injustiça que ocorre a todos os momentos no mundo (principalmente em momentos de crise, como atualmente) do saque dos bolsos das pessoas em benefício de banqueiros e grandes empresas em geral. Seria o fim da burocracia e da plutocracia.
Além do mais, a sociedade anarquista é, acreditamos nós, a única compatível com os direitos indivíduais que formam a base do senso de justiça de todas as pessoas: a crença de que se deve submeter a todos às normas comuns do convívio social.
E mesmo para os não tão românticos, que não acreditam que temos a possibilidade de alcançar uma sociedade desse tipo em nossas vidas, por que não tê-la como ideal assintótico? Vamos nos aproximar dela o máximo possível? Dedique um tempo ao tema, eu espero.
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Artigo publicado originalmente em:
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