sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Anarquia é Ordem: movimentos anarquistas como políticas construtivas




ANARCHY IS ORDER: ANARCHIST
MOVEMENTS AS CONSTRUCTIVE POLITICS *

Resumo Nos últimos anos, as manifestações dramáticas de anarquistas durante fóruns
econômicos globais e convenções de partidos políticos têm obtido muita atenção
da mídia. Infelizmente, além das abordagens largamente sensacionalistas desses
meios de comunicação, que descrevem anarquistas como encrenqueiros violentos,
muito pouco se sabe sobre quem eles são, o que pensam ou a que suas políticas realmente
dizem respeito, deixando obscurecidas as atividades de um grande e crescente
movimento contemporâneo. As práticas construtivas desenvolvidas diariamente pelos
ativistas anarquistas à procura de um mundo livre da violência, da opressão e da exploração
perdem-se em abordagens sensacionalistas. O exame de alguns desses projetos
anarquistas construtivos proporciona uma compreensão de tentativas do mundo
real de desenvolver relações sociais pacíficas e criativas no aqui e agora da vida diária.
Apesar da associação feita pela mídia entre anarquismo e violência, iniciativas
anarquistas contemporâneas têm se dirigido basicamente à mudança social pacífica
por meio da construção de novas comunidades e instituições.

Palavras-chave ANARQUISMO – MOVIMENTOS ANARQUISTAS – POLÍTICA – POLÍTICAS
CONSTRUTIVISTAS.

Abstract Over the last few years the dramatic actions of anarchists demonstrating
during global economic summits and political party conventions have gathered much
media attention. Unfortunately, beyond the largely sensationalistic media accounts,
which depict anarchists as violent trouble-makers, very little is known about who
anarchists are, what they think, or what their politics actually involve, leaving the
activities of a major, and growing, contemporary movement obscured. Lost in
sensationalist accounts are the constructive practices undertaken daily by anarchist
activists seeking a world free from violence, oppression and exploitation. An
examination of some of these constructive anarchist projects provides insights into
real world attempts to develop peaceful and creative social relations in the here and
now of everyday life. Despite the media portrayals, which associate anarchism and
violence, contemporary anarchist initiatives have been primarily directed towards
peaceful social change by building new communities and institutions.

Keywords ANARCHISM – ANARCHIST MOVEMENTS – POLITICS – CONSTRUCTIVE
POLITICS.

* Tradução para o português: NUNO COIMBRA MESQUITA.



A burguesia pode destruir e estragar seu próprio mundo antes de deixar o
estágio da história. Mas nós carregamos um novo mundo em nossos
corações.

BUENAVENTURA DURRUTI

O fantasma do anarquismo voltou a assombrar os sonhos
de globalizadores estatais e capitalistas. Considerado
por muitos da esquerda e da direita como um
movimento político fracassado, ele teria sido dado
como morto nas chamas da Revolução Espanhola.
Nos últimos seis anos, entretanto, as manifestações
dramáticas de anarquistas do lado de fora dos fóruns
econômicos globais e das convenções de partidos políticos revelam-no
um movimento vital e crescente.
Ao mesmo tempo, as ações atribuídas aos chamados anarquistas
“bloco negro” em fóruns capitalistas globais, desde os encontros da Or
ganização Mundial do Comércio (OMC) de 1999, em Seattle, têm sido
alvo de sensacionalismo pela mídia mainstream para construir um pânico
moral sobre o anarquismo. Da mesma forma, o ataque policial a anar
quistas, incluindo spray de pimenta, gás lacrimogêneo, balas de borracha,
prisões em massa, além de vários tiroteios e até algumas mortes, sugerem
fortemente, ao público em geral, que eles devem ser temidos.
Infelizmente, além das abordagens sensacionalistas da mídia, des
crevendo os anarquistas como encrenqueiros violentos, muito pouco se
sabe sobre quem eles de fato são, o que pensam e a que suas políticas re
almente dizem respeito. Esses movimentos radicais e “underground” per
manecem largamente ignorados por sociólogos, apesar de, nos últimos
anos, alguns autores terem se debruçado sobre o significado de
manifestações recentes de resistência ao capital global. A ausência de aná
lises razoáveis de políticas anarquistas tem significado que as reais práti
cas e intenções de um movimento contemporâneo grande e crescente
permanecem obscurecidas. As práticas construtivas desenvolvidas diaria
mente pelos ativistas anarquistas, procurando um mundo livre da violên
cia, opressão e exploração, perdem-se em abordagens sensacionalistas. O
exame de alguns desses projetos anarquistas construtivos proporciona
uma compreensão de tentativas do mundo real de estabelecer relações so
ciais pacíficas e criativas no aqui e agora da vida cotidiana.

ANARQUISMO E IMAGENS DE VIOLÊNCIA

Dada a sua longa história de conflitos diretos com proponentes de
Estado e de capital, não é surpresa que anarquistas contemporâneos tenham
sido alvejados por autoridades estatais. Imagens impressionantes
dessa história permanecem nas caricaturas de “atiradores de bombas” em
seus sobretudos pretos, que começaram a ganhar notoriedade na virada
do século XIX para o XX. Romances como o The Secret Agent (O Agente
Secreto), de Conrad, e The Bomb (A Bomba), de
Harris, mantiveram vivo o caráter do fanatismo,
enquanto, mais recentemente, o Unabomber sugeriu
seu retorno. Na imaginação popular, o fantasma
da anarquia ainda invoca noções de violência,
caos e destruição e o colapso da civilização.
Evidentemente, poucos anarquistas chegaram
alguma vez a se envolver com o terrorismo
ou a defender a violência. A caracterização surge
largamente de poucos atentados à bomba e assassinatos
impressionantes, resultado do desespero
da década de 90 do século XIX. O anarquismo
contou certamente com assassinos e fazedores de
bomba, figuras como Ravachol e Emile Henry,
no século XIX, e Leon Czolgosz, que matou o
presidente estadunidense McKinley, em 1901.
Alguns anarquistas contemporâneos escolheram
personificar essa imagem, vestindo-se inteiramente
de preto e imprimindo fanzines com títulos
como “The Blast” (O Estouro) e “Agent
2771” (Agente 2771).
Apesar da força das imagens violentas, o
anarquismo possui tradição pacífica.5 Textos de
anarquistas, como Godwin, Proudhon, Kropotkin
e Tolstoi, são movidos por sentimentos de
mutualismo, sociabilidade, afinidade e afeição.
Iniciativas anarquistas caminham basicamente na
direção da construção de novas comunidades e
instituições. A história do anarquismo mostra, na
verdade, seus ativistas como vítimas da violência
política. Como observa Marshall, eles aparecem
“como uma juventude frágil atropelada por multidões
de fascistas e comunistas autoritários”.6
Isso não é surpresa, já que os anarquistas questio
nam a própria legitimidade de instituições autoritárias
como o Estado. Ainda segundo Marshall,
as implicações radicais do anarquismo não têm
sido desperdiçadas em governantes (da esquerda
ou da direita) ou em governados, “enchendo os
governantes de medo, já que podem se tornar obsoletos,
dando esperança aos desapossados e
àqueles que refletem, uma vez que são capazes de
imaginar um tempo em que poderão ser livres
para governar a si mesmos”.
Essa história de conflito e criminalização
explica, pelo menos parcialmente, por que criminologistas
têm estado muito à frente de sociólogos,
ao prestar atenção às atividades anarquistas.
Ademais, é preciso considerar o legado do marxismo,
8 que, desde o começo, manifestou seu
desgosto pelo sabor crítico da ação direta anarquista
e sua propaganda. Como resultado, a sociologia
vem excluindo largamente movimentos,
políticas e análises anarquistas de sua vasta gama
de trabalhos em movimentos sociais.

ANARQUIA É ORDEM

A palavra anarquia – anarchos, do grego antigo
– significa simplesmente sem um governante.
Ao invés da incursão na guerra de todos contra
todos, de Hobbes, a sociedade sem governo
sugere aos anarquistas a possibilidade de relações
humanas criativas e pacíficas. Proudhon resumiu
a posição anarquista em seu famoso slogan
“Anarquia é Ordem”.Os anarquistas não sugerem
somente que governos e leis são desnecessários
à preservação da ordem, mas também que
eles, na verdade, impedem a paz social, ao manter
os conflitos da desigualdade e da hierarquia.
A primeira filosofia política sistemática que
poderia ser chamada de anarquista é geralmente
atribuída a William Godwin. Para esse autor, as
leis desencorajam respostas criativas a problemas
sociais, primeiro, porque reduzem experiências
humanas a uma medida geral e, segundo, porque
destinam o pensamento humano a uma condição
fixa, impedindo, assim, aperfeiçoamentos. Godwin11
vê a coerção como uma injustiça, incapaz
de convencer ou conciliar aqueles contra os quais
é empregue. A coerção, expressa na lei e na punição,
ensina apenas que se deve submeter à força e
concordar em ser dirigido não “pelas convicções
do seu entendimento, mas pela parte mais vil de
sua natureza, o medo da dor pessoal e um temor
compulsório da injustiça de outros”.O caminho
para a virtude, segundo Godwin, não está na submissão
à coerção, mas somente na resistência a
ela. No lugar da punição, por ele considerada prova
de profunda falta de imaginação, advoga remover
as causas do crime (governo e propriedade) e
“despertar a mente” pela educação.
O próprio Tolstoi, anarquista pacifista, desenvolveu
as seguintes reflexões: “Leis são demandas
para executar certas regras; e compelir algumas
pessoas a obedecer a certas regras (isto é,
fazer aquilo que as pessoas querem delas) só pode
ser conseguido por golpes, pela privação da liberdade
e pelo assassinato. Se existem leis, deve existir
a força que pode compelir pessoas a obedecêlas”.
13 Para Tolstoi, a base da legislação não se encontra
em noções incertas, como direitos ou a
“vontade do povo”, mas na capacidade de controlar
a violência organizada, no poder coercivo
do Estado. Leis representam a aptidão daqueles
que estão no poder de usar a violência para lhes
efetivar práticas lucrativas.

OS NOVOS MUNDOS DO ANARQUISMO

Desde o começo da década de 90, o anarquismo
como força política consciente vem sofrendo
extraordinário ressurgimento. Transformações
econômicas globais, juntamente com desordens
sociais e crises ecológicas, estimularam a
redescoberta do anarquismo por pessoas que
buscam alternativas ao capitalismo e ao comunismo.
Simultaneamente, o colapso do capitalismo
de Estado na União Soviética e o deslocamento
de partidos social-democratas ocidentais para a
direita desacreditaram o socialismo como alternativa
ao capitalismo neoliberal. Com a esquerda
política desbaratada, o anarquismo representa
para muitos uma alternativa tanto à democracia
liberal quanto ao marxismo.
Anarquistas contemporâneos mantêm um
comprometimento com objetivos anarquistas históricos
de criar uma sociedade sem governo, Estado
e propriedade privada dos meios de produção,
na qual as pessoas se associem voluntariamente.
De fato, a definição de anarquismo apresentada
por anarquistas em encontros recentes ressalta a
abrangência de sua concepção de liberdade:
sociedade autogovernada na qual pessoas organizam-
se de baixo para cima em uma base igualitária;
as decisões são tomadas por aqueles afetados por
elas; com controle democrático direto dos locais
de trabalho, escolas, bairros, cidades e biorregiões
com coordenação entre grupos diferentes conforme
necessário. Um mundo em que mulheres e homens
são livres e iguais e todos nós temos poder
sobre nossas próprias vidas, corpos e sexualidade,
em que celebramos e vivemos equilibradamente
com a terra e valorizamos a diversidade de culturas,
raças e orientações sexuais; em que trabalhamos e
vivemos juntos em cooperação.
Os anarquistas vislumbram uma sociedade
apoiada na autonomia, na auto-organização e federação
voluntária, em contraposição ao “Estado,
como determinado corpo planejado para manter
um esquema compulsório de ordem legal”.16
Anarquistas contemporâneos canalizam muito
de seus esforços para transformar a vida cotidiana
por meio do desenvolvimento de relacionamentos
e organizações sociais alternativas. Não se
contentam em esperar por reformas iniciadas
pela elite ou por utopias “pós-revolucionárias”
futuras. Liberdades sociais e individuais devem
ser expandidas nos dias de hoje.
Para dar vida às suas idéias, os anarquistas
criam exemplos que funcionam. Tomando emprestado
uma antiga frase sindicalista, eles estão “formando
a estrutura do novo mundo no casco do velho”.
Tais experiências de vida, popularmente denominadas
de FVM (“faça você mesmo”), são os
meios pelos quais anarquistas contemporâneos retiram
o seu consentimento de estruturas autoritárias
e começam a se engajar em outros relacionamentos.
O FVM libera contraforças fundadas em
noções de autonomia e auto-organização como
princípios motivadores, contra os discursos políticos
e culturais normativos do neoliberalismo. Os
anarquistas criam espaços autônomos, que não dizem
respeito ao acesso ao Estado, e sim à recusa
das formas desse acesso (nacionalismo etc.).
Na vanguarda do FVM contemporâneo estão
as zonas autônomas ou centros comunitários
apoiados em princípios anarquistas, que fornecem
refeições, roupas e abrigo aos necessitados. Esses
lugares, às vezes (mas nem sempre) assentamentos,
destinam-se ao encontro para a exploração e
o aprendizado de histórias e tradições antiautoritárias.
O auto-aprendizado revela-se um aspecto
importante da política anarquista e as zonas autônomas
são fundamentais como locais para a requalificação.
O FVM e a democracia participativa
são relevantes precisamente por encorajarem os
processos de aprendizado e independência, necessários
a comunidades auto-estabelecidas.
As zonas autônomas são lugares voltados a
formas bem diversas e complexas de atividades. O
Trumbellplex, em Detroit, é um exemplo interessante.
Alojado, ironicamente, na casa abandonada
de um industrial do início do século, o Teatro
Trumbell serve de espaço cooperativo de convivência,
abrigo temporário, cozinha e biblioteca.
Uma de suas dependências foi convertida em teatro
para anarquistas visitantes, bandas punks e grupos
performáticos, como o Bindlestiff Circus.
Os anarquistas procuram fazer dessas zonas
autônomas partes valorizadas dos bairros em
que estão localizadas. São realizadas tentativas de
abordar residentes locais com escolas gratuitas,
refeições comunitárias, troca de roupas e mesas
de bens gratuitos. A visão mais ampla inclui estender
esses espaços autônomos a um número
cada vez maior de bairros, na medida em que os
recursos e condições o permitam.
A ênfase na ação direta e no FVM também
fez surgir ativistas utilizando filmadoras em lutas
sociais para documentar importantes eventos ou
observar a polícia para provar o que de fato acontece
numa manifestação ou greve. O ativismo de
vídeo serve de alternativa à confiança na mídia
corporativa para a cobertura de eventos ou
disseminação de informação. Agressões aos anarquistas
e práticas racistas da polícia em comunidades
familiares levaram à formação do copwatch
(vigilância sobre a polícia), que se vale de filmadoras
para seguir os passos dessa corporação nas
manifestações e desencorajar-lhe o uso da força.
A agressão perpetrada sobre anarquistas além da
visão da mídia mainstream demonstra a significância
dessa forma de documentação. O fato de
muitas ações e prisões policiais em manifestações
antiglobalização terem sido dirigidas contra ativistas
que filmam e contra centros de mídia independente
prova que as autoridades também reconhecem
o valor da testemunha em vídeo.
O anarquismo também desenvolveu presença
ativa na internet. O principal espaço para o
intercâmbio direto entre anarquistas é o A-infos,
serviço internacional anarquista de notícias
diárias, em diversas línguas, produzido por grupos
ativistas incansáveis, em cinco países. O trabalho
é realizado por voluntários no seu tempo
livre, freqüentemente com equipamentos emprestados
ou reutilizados. Mas o meio mais notável
para a distribuição de informação continua
sendo a vigorosa imprensa anarquista. Publicações
antigas incluem Freedom, Fifth Estate, Anarchy
e Kick it Over. Em nível local, fanzines FVM,
como The Match, Demolition Derby e Sabcat
mantêm o pensamento anarquista vivo, ao mes-
mo tempo em que expandem a gama de políticas
anarquistas para incluir novos participantes.
A cultura de consumo também é atacada e
subvertida de várias maneiras: exposição do fetichismo
por mercadorias, resistência ao desenvolvimento
capitalista, ocupação de lugares de consumo
como shopping centers, boicotes ou organização
de dias de “roube alguma coisa” e mais a
produção e a troca do “faça você mesmo” fora de
mercados capitalistas. Atividades underground
também podem ser desenvolvidas, como o grafite,
o vandalismo de outdoors ou a sabotagem.

CULTURAS DE TRANSFERÊNCIA ANARQUISTAS

Tomados em seu conjunto, esses são os blocos
construtivos do que Howard Ehrlich se refere
como cultura de transferência anarquista, uma aproximação
da sociedade futura no presente. As culturas
de transferência anarquistas são tentativas, por
parte desses ativistas, de atingir os requerimentos
básicos da construção de comunidades sustentáveis.
Uma cultura de transferência é aquele aglomerado
de idéias e práticas que levam as pessoas a fazer a
viagem da sociedade aqui para a sociedade lá no futuro…
Como parte da sabedoria aceita dessa cultura
de transferência, entendemos que nunca poderemos
alcançar algo que vá além da própria cultura.
É possível, realmente, que esteja na própria
natureza da anarquia a construção permanente de
uma nova sociedade no interior de qualquer que
seja a sociedade que nos encontremos.
Nos seus esforços para construir culturas de
transferência anarquistas, ativistas freqüentemente
chegam a ocupar posições de marginalidade. Essa
situação surge, em parte, da determinação dos anarquistas
de se sustentarem fora do mercado de trabalho
capitalista. Seu sustento resulta de atividades
como performances, venda de comida ou artesanato
e jornalismo freelance. Ademais, existem aqueles
que vivem clandestinamente em assentamentos ou
dumpster-diving (mergulho em lixeiras).
Reduzir a dependência do local de trabalho capitalista
significa retirar-se da cultura orientada pelo
consumo, reduzindo as necessidades econômicas,
desenvolvendo instituições alternativas e construindo
uma rede econômica alternativa.

A vida comunitária, a troca de trabalho, recursos e
habilidades, bancos de tempo e de trabalho, créditos
de terra, fundos populares e até mesmo um sistema
monetário alternativo são todos parte do programa
econômico para uma cultura de transferência.
Muitos anarquistas tentam livrar-se de práticas
de integração social, ao passo que outros
acabam violentamente expulsos. Isso encoraja
ainda mais a construção da autonomia tida como
necessária ao desenvolvimento da anarquia. “Somos
‘marginais’ em parte porque não somos parte
das principais instituições ou das práticas culturais
de nossa sociedade, mas também porque
vivemos no limiar entre a sociedade existente e a
nova sociedade. Vivemos nossa vida e construímos
nossas alternativas nesse limiar.”
Nesse sentido, as zonas autônomas anarquistas
constituem locais-limites, espaços de
transformação e passagem. São importantes centros
educacionais, em que os anarquistas se preparam
para as novas formas de relacionamento
essenciais à quebra das estruturas autoritárias e
hierárquicas. Os participantes também aprendem
tarefas diversas e habilidades interpessoais variadas
necessárias ao trabalho e à vida coletivos. Esse
compartilhamento de habilidades serve para desestimular
o surgimento de elites do conhecimento
e incentivar o compartilhamento de todos
os trabalhos, até os menos desejáveis, mas indispensáveis
à manutenção social.
Os anarquistas encaram seus esforços
como uma maneira de abrir caminho para substituir
o Estado e o capital por federações descentralizadas.
Reivindicam a construção de um espaço
em volta das fronteiras de regiões ecológicas –
em contraposição aos limites dos Estados nação,
que só lhes mostram desprezo –, marcadas pela
topografia, pelo clima, pela distribuição das espé
cies ou drenagem. A afinidade com temas biorregionalistas
é reconhecida nos apelos pela substituição
dos Estados nação por comunidades biorregionais.
Para os autonomistas, tais comunidades
podem estabelecer relações sociais articuladas
com necessidades ecológicas locais, em vez das interferências
burocráticas e hierárquicas de entidades
corporativas distantes. A comunidade local
torna-se o contexto construído da identificação
social/ecológica. O “bairro” reaparece como contexto
no qual pode se esperar que uma política vibrante
tenha êxito.
Os anarquistas estimulam o aprofundamento
das idéias e conceitos como remédio para ampliar
o conhecimento anônimo e desengajado,
que acreditam ser endêmico às condições da chamada
pós-modernidade. Isso não significa, entretanto,
isolamento ou insulamento. Ao contrário,
diz respeito a relações sociais, locais ou federadas,
organizadas de maneira descentralizada
partindo da base. A reconstrução comunitária
em torno do regionalismo interconectado é vista
como não hierárquica, já que nenhuma região
pode alegar predominância sobre outras, sob
pretextos ecológicos.
Esse novo radicalismo vive fora do Estado
e organiza-se em direção à autodependência. Os
participantes são estimulados a identificar problemas
locais e a ampliar e unir ações FVM individuais,
como salvar um parque ou limpar um terreno
abandonado, com as quais já estão envolvidos.
As pessoas são instigadas a trabalhar para defender
essas áreas por meio de práticas industriais
e agrárias, desenvolvidas e adaptadas a características
ecológicas específicas. Antecipa-se entre os
ativistas que, para preparar a ruptura com a ordem
capitalista global, há necessidade de alguma
reintegração da produção com o consumo local,
de modo que membros de uma comunidade contribuam
para a sua manutenção. O cultivo e o
compartilhamento de habilidades contribui para
o sentido de auto-suficiência e controle pessoal,
permitindo vários graus de autonomia de regimes
mais amplos de poder.

A CRIMINALIZAÇÃO DA DIVERGÊNCIA

Essas atividades autovalorizadoras do anarquismo
impõem um processo contraditório freqüentemente
temporário e passageiro, especialmente
diante da vigilância estatal e da violência
direta. Espreitando, na paisagem de zonas autônomas,
estão “aqueles que rejeitam a idéia de que
pessoas deveriam ser livres para seguir seus sentimentos
e se expressar por meio de novos estilos
de vida”.Os Estados não reagem bondosamente
a esforços para minar o seu poder e a sua autoridade.
“Como dizia Malatesta, você tenta fazer
a sua coisa e eles intervêm, e aí você é o culpado
pela luta que acontece.”
Centenas de ativistas foram presos simplesmente
por se envolver com grupos anarquistas.
Ademais, foram espancados, atacados com spray
de pimenta e gás. Durante manifestações recentes
ocorridas em Papua-Nova Guiné e, com maior
destaque, em Gênova, na Itália, foram mortos
pela polícia e por militares. Esses eventos horríveis
deixam claro o relacionamento do Estado com regimes
de governo neoliberais. As ações da polícia
e das autoridades militares servem de lembrete de
que a dominação direta ainda é um aspecto do governo
na era global. Aqueles que tentam operar
fora das esferas circunscritas da ação “legítima” ou
da política “normal” ficam sujeitos à supressão e à
violência, incluindo a morte.

CONCLUSÃO

Em resposta criativa, os anarquistas defendem
o pluralismo e a diversidade nas relações sociais,
estimulando a experimentação no viver e
desdenhando a censura. Não acreditam na possibilidade
de uma resposta “correta” a perguntas de
autoridade e poder; por isso, incentivam as pessoas
a encontrar alternativas múltiplas, considerando
as condições específicas com as quais se confrontam.
Assim, os anarquistas de hoje se identificam
de maneira variada como punks, ativistas
dos direitos dos animais, sindicalistas, ecologistas
sociais ou neoprimitivos, “armando seus desejos”
por meio da colagem, do veganismo,da
“música barulho”, da polissexualidade e da “deso-
bediência civil eletrônica”. Como sempre, oferecem
alternativa a formas autoritárias de organização
social, tanto capitalista quanto socialista.
Talvez, como argumenta Colin Ward, a
anarquia esteja sempre aqui, “uma semente debaixo
da neve, enterrada debaixo do peso do Estado
e de sua burocracia, do capitalismo e de seu desperdício,
do privilégio e de suas injustiças, do nacionalismo
e de suas lealdades suicidas”,Ward
vê o anarquismo não como “uma visão especulativa
de sociedade futura”, mas uma “descrição de
um modo de organização humana enraizada na
experiência da vida cotidiana, que opera lado a
lado com e apesar das tendências autoritárias dominantes
de nossa sociedade”.
Para Paul Goodman, autor americano cujos
trabalhos influenciaram a contracultura e a nova
esquerda da década de 60, os projetos anarquistas
representam atos necessários para “estabelecer
um limite” contra forças autoritárias e opressivas
em nossa sociedade. O anarquismo, na visão desse
autor, nunca foi exclusivamente orientado para
um futuro glorioso, mas também envolveu a preservação
de liberdades passadas e tradições libertárias
prévias de interação social. “Uma sociedade
livre não pode ser a substituição da velha ordem
por uma ‘nova ordem’; é a extensão de esferas da
ação livre até que elas se tornem a maior parte da
vida social.”30 O pensamento utópico sempre
será importante, diz Goodman, de modo a abrir
a imaginação a novas possibilidades sociais, mas o
anarquista contemporâneo precisa também ser
um conservador das tendências benevolentes da
sociedade.
Como sugerem muitos trabalhos anarquistas
recentes, o potencial para a resistência pode
ser encontrado em qualquer lugar na vida cotidiana.
31 Se o poder é exercido em toda a parte, a resistência
a ele pode surgir também em todo lugar.
Anarquistas contemporâneos defendem que um
olhar pela paisagem da sociedade contemporânea
revela muitos grupos anarquistas na prática, ainda
que não em ideologia.
Exemplos incluem pequenos grupos sem líderes
desenvolvidos por feministas radicais, cooperativas,
clínicas, redes de aprendizado, associações de mídia,
organizações de ações diretas, grupos espontâneos
em resposta a desastres, greves, revoluções e
emergências, creches controladas pela comunidade,
associações de bairro, organizações de inquilinos e
de locais de trabalho, e assim por diante.
Ainda que, obviamente, esses não sejam
grupos explicitamente anarquistas, freqüente-
mente fornecem exemplos de ajuda mútua e de
formas de viver não-hierárquicas e não-autoritárias,
que carregam a memória do anarquismo entre
elas. São esses modos de vida que criam as
possibilidades de relações sociais pacíficas.

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