Elaborar uma análise com alguma consistência epistemológica e metodológica sobre as potencialidades do anarquismo para o século XXI não é uma tarefa fácil. A verossimilhança desta afirmação decorre de três fatores fundamentais. Em primeiro lugar as mudanças emergentes nas sociedades capitalistas a nível mundial revelam-se cada vez mais complexas e abstratas e, portanto, extraordinariamente difíceis de interpretar, compreender e explicitar. Em segundo lugar, e não obstante a sua validade heurística como sistema de princípios e práticas sociais, o anarquismo atravessa uma série de contradições e limites, cuja pertinência e admissibilidade é difícil de aceitar pelos seus ideólogos mais intransigentes e dogmatizados. Finalmente, importa referir que os anarquismos que personificam a diversidade teórica e prática da anarquia, se conseguirem realizar uma crítica radical da sociedade capitalista e se conseguirem adaptar uma postura ética e filosófica sustentada pela solidariedade, a liberdade e a cooperação, poderão, no presente e no futuro histórico próximo, potenciar a anarquia e a emancipação social.
Para dar conteúdo e forma a estas observações iniciais, reportar-me-ei a explicitar as tendências perversas da condição-função do trabalho assalariado no contexto da globalização e da racionalidade instrumental do capitalismo, focando nomeadamente as dualizações críticas que atravessa. Por outro lado, torna-se relevante perceber a natureza da crise do Estado-Nação, assim como dos partidos e sindicatos. Relativamente à atual situação histórica do anarquismo, é chegado o momento de não continuar a pensar e a agir exclusivamente com base nos mitos, nos símbolos e nas figuras emblemáticas do passado, transformando a nossa frustração e a impotência teórica e prática do presente em vitórias e feitos gloriosos que não vivemos e não podemos reivindicar como só a nós pertencesse. A crise dos anarquismos não radica exclusivamente na perpetuação do Estado, do capitalismo e de Deus, mas em nós, através das práticas e princípios que desenvolvemos. Na minha opinião, a credibilidade da anarquia, enquanto probabilidade histórica de emancipação social, nunca foi tão verossímil como hoje. Para o efeito, é imperioso construir espaços de intervenção prática e teórica que permitam estruturar uma ação individual coletiva a nível local, regional, nacional e mundial, dando assim corpo e forma à auto-consciencialização, à auto-organização e ao auto-governo dos indivíduos e grupos, cujo sentido e orientação histórica é a anarquia.
Globalização e crise do capitalismo
Os efeitos perversos da crise do capitalismo no contexto da globalização são cada vez mais visíveis nos aspectos relacionadas com a economia e a difusão das tecnologias de informação e comunicação, mas também progressivamente nos domínios cultural, político e social.
No caso específico da economia, basta-nos referir a generalização do mesmo modelo de produção, distribuição e consumo de bens e serviços e, por outro lado, a similitude do tempo virtual ao tempo real dos investimentos, das fusões e aquisições do capital financeiro. A deslocalização espaço-temporal do sistema financeiro mundial permite que em tempo real capitais, investimentos, venda e compra de ações, tecnologias, modelo de organização do trabalho sejam objeto de valorização do capitalismo. É um tipo de capitalismo sem rosto, abstrato, que se movimenta com extrema facilidade de uma região para outra região, de um país para outro país, de um continente para outro continente, de uma cidade para outra cidade, com extrema facilidade e, em certa medida, sem qualquer constrangimento administrativo, territorial, jurídico e político.
Todavia, a matriz essencial desse processo radica nas contingências das novas tecnologias e da organização do trabalho sobre a eficiência e a eficácia do fator de produção trabalho no quadro da racionalidade instrumental do capitalismo. Assim, desde a década de 1970, foi possível que os países capitalistas mais avançados desenvolvessem de forma mais proficiente uma maior integração entre a ciência e a técnica, inovando e mudando todo o sistema de produção, de distribuição e consumo de mercadorias. As novas tecnologias - informática, microeletrônica, robótica, biotecnologia, telemática, etc... - , como inclusive os novos materiais baseados nas novas ligas metálicas, materiais compósitos e fibra óptica, são a expressão mais representativa dessa evolução.
Se relacionarmos o impacto das novas tecnologias sobre a organização do trabalho, verificamos que tendencialmente nas sociedades capitalistas desenvolvidas, e por arrastamento lógico nos países capitalistas menos desenvolvidos, estamos a assistir a profundas transformações com repercussões manifestas no mundo do trabalho assalariado. Neste contexto, não admira que grande parte da energia, da informação, do conhecimento que no período histórico precedente estava polarizada na ação individual e coletiva do operariado da segunda revolução industrial fosse deslocado para os mecanismos automáticos das máquinas-ferramentas que personificam as novas tecnologias. Na estrita medida em que todo o trabalho assalariado é sempre objeto de eficiência e de eficácia no quadro da racionalidade instrumental do capitalismo e porque, ainda, está sujeito a uma relação social de produção capitalista, é constrangido a sobreviver como fator de produção de bens e serviços, por forma a assumir a sua finalidade básica: maximização de lucro. A organização do trabalho, no que concerne a divisão social do trabalho, a estrutura hierárquica de autoridade formal, o processo de tomada de decisão e o processo de liderança cumulativamente é também objeto de uma maior racionalização, permitindo que todo o processo de trabalho também se traduza no aumento da eficácia e da eficiência do fator de produção trabalho.
Toda esta realidade de inovação e mudança é perpassada por uma série de interdependências e complementaridades, resultando numa construção de várias sínteses: aumento gigantesco da produtividade do trabalho, com conseqüências manifestas no aumento de produção de riqueza em bens e serviços e, como corolário lógico, na produção de lucro. Um outro aspecto importantíssimo radica no fato de que as linguagens informacionais e comunicacionais que as novas tecnologias comportam são perfeitamente compatíveis com um saber-fazer do fator de produção trabalho padrão. Por esta via, fábricas, tecnologias, modelo de organização do trabalho, capitais, investimentos, etc., são facilmente deslocados de um continente para outro continente ou de um país para outro país. A globalização, numa perspectiva meramente econômica, permite um acréscimo inaudito da capacidade de concorrência e de competição das empresas multinacionais e transnacionais que operam no mercado mundial, ao ponto de com a mesma tecnologia e a mesma organização do trabalho maximizarem a massa e a taxa de lucro, a partir de custos de produção distintos, nomeadamente com pagamento de salários baixíssimos nos países capitalistas menos desenvolvidos.
As conseqüências perversas da globalização e da crise capitalista no mundo do trabalho assalariado podem resumir-se em quatro dualizações específicas: qualificação / desqualificação; emprego / desemprego; estabilidade de emprego / vínculos contratuais precários; integração social/ exclusão social.
Quanto à primeira dualização do trabalho assalariado, podemos observá-la no deslocamento da energia, da informação e do conhecimento para os mecanismos automáticos das novas tecnologias. Como grande parte dessa energia, informação e conhecimento antes estava corporizado nas funções e tarefas adstritas do fator de produção, parte substancial das competências, da qualificação e da perícia consubstanciada nos perfis profissionais do saber-fazer do operariado clássico, são também integrados nos mecanismos complexos e sofisticados das novas tecnologias. Resulta daqui que muitos dos gestos, dos movimentos, das pausas e do tempo que o fator de produção trabalho poderia desenvolver para potenciar a sua qualificação são dispensados ou inviabilizados. Por outro lado, ao aumentar a eficácia e a eficiência da produtividade do fator de produção trabalho, muitas das qualificações e competências que configuravam os perfis profissionais da segunda revolução industrial tornaram-se obsoletos. Nesta assunção, todos aqueles que possuem qualificações compatíveis com a concepção, programação, planejamento, coordenação, controlo, reparação e manutenção das novas tecnologias tenderão para manter ou aumentar as suas qualificações como trabalhadores assalariados. Todos os outros, que no caso são a maioria, limitam-se a serem meros serventuários e apêndices funcionais das novas tecnologias. Por realizarem tarefas com poucas exigências de conhecimento e informação, a qualificação desta imensa massa de trabalhadores indiferenciados é reduzida ou nula.
O contínuo lógico do aumento da eficácia e da eficiência da produtividade do fator de produção trabalho traduz-se numa outra dualização, materializada no desenvolvimento do desemprego e na diminuição das probabilidades de criar novos empregos ou manter o emprego existente. O caráter irreversível desta dualização é imanente à própria racionalidade instrumental do capitalismo. De fato, sendo o trabalho assalariado um meio e não um fim na lógica de concorrência e da competição no mercado mundial, ele só poder ser útil e eficaz se for cada vez mais uma função de produção otimizada de mercadorias e de lucro. Embora as estatísticas oficiais tendam a escamotear o aumento das taxas de desemprego a nível mundial, se pensarmos no imenso mercado do trabalho assalariado que emerge no mundo da exclusão social e da economia informal, facilmente chegamos a uma outra conclusão da expressão do desemprego nas sociedades capitalistas contemporâneas.
A terceira dualização decorre, em parte, das duas precedentes. Possuir qualificações ajustáveis às novas tecnologias e manter o emprego estável implica que cada trabalhador assalariado seja cada vez mais competitivo e eficiente. Os conceitos de flexibilidade, polivalência e empregabilidade são as formas modernas de gestão das empresas apropriadas para esse efeito. Cada trabalhador assalariado, sem exceção, para poder sobreviver no mercado de trabalho, vê-se constrangido a seguir esse modelo comportamental. Se não seguir esse caminho, soçobrará. Assim, todos os trabalhadores assalariados que forem suficientemente flexíveis, polivalentes e criadores dinâmicos do seu próprio emprego conseguirão assegurar uma vinculação contratual estável no mercado de trabalho. Todos os outros que possuírem pouca ou nenhuma qualificação, que não são suficientemente competitivos e que não se adaptam aos desígnios da flexibilidade, da polivalência e da empregabilidade, serão constrangidos a enveredar para uma situação negativa: vínculos contratuais precários, salários baixos, inexistência de direitos sindicais e de segurança social, etc.
Decorrente das três dualizações da situação perversa do trabalho assalariado, observamos que aqueles que são qualificados, têm emprego e vinculação contratual estável revelam-se agentes sociais de integração social e, logicamente, da ordem social vigente. A esmagadora maioria dos trabalhadores assalariados que possuem pouca qualificação, não têm emprego e mantém uma vinculação contratual precária no mercado de trabalho, na generalidade dos casos, engrossam o contingente da exclusão social e da desintegração social. Estes, para sobreviver, ou entram no mundo do crime, da droga, da violência e da prostituição, ou então integrar-se-ão na economia informal. A miséria, a pobreza, o racismo, a xenofobia, o nacionalismo e o integrismo religioso são as expressões negativas mais genuínas desta evolução.
Os efeitos da crise política no contexto da globalização capitalista é sobretudo visível na crise de legitimidade do Estado-Nação, dos partidos e sindicatos, enquanto funções específicas de representatividade institucional e formal. Na verdade, as contradições e limitações políticas do Estado-Nação são cada vez mais significativas. Enquanto instituição que monopoliza o exercício da violência, administra um território específico, exerce o poder jurídico, legislativo e executivo com o sentido explícito da manutenção e estabilidade da ordem social, política, econômica e cultural, revela-se cada vez mais ineficiente. Por outro lado, ao evoluir para uma excessiva centralização e burocratização, distanciou-se enormemente dos indivíduos e dos corpos sociais intermédios que constituem a sociedade civil. A globalização da economia e do sistema financeiro capitalista implica a existência de um poder político homogêneo, que seja adaptado às exigências de concorrência e de competição do mercado mundial. A importância crescente de instituições e organizações de caráter transnacional (ONU, NATO, FMI, OMC, Banco Mundial, CEE, Grupo dos 7) na regulação de conflitos regionais e locais, na qual manifestamente o Estado-Nação se tem revelado impotente, é bastante elucidativo.
Os partidos e sindicatos, como corpos sociais intermédios da sociedade civil, também estão a sofrer do síndrome da crise de legitimidade de representatividade política e sindical. Enquanto fábricas de gestão social de manutenção da estabilidade normativa do sistema capitalista, só podem sobreviver se continuarem a lutar por uma tipologia de reivindicações assentes na persistência do trabalho assalariado, da divisão social do trabalho, da propriedade privada, do dinheiro, do Estado e do capital. A sua capacidade de subsistir no contexto da globalização e da crise capitalista torna-se cada vez mais difícil, razão pela qual a política e o sindicalismo protagonizados pelas funções específicas dos partidos políticos e dos sindicatos seja objeto de perda de credibilidade e de legitimidade junto dos grupos sociais e das massas trabalhadoras que representam.
Em termos sociais, os efeitos perversos da globalização e da crise capitalista são passíveis de visualizar no processo social de individualização, atomização e alienação dos indivíduos que constituem as sociedades capitalistas contemporâneas. Por outro lado, os corpos sociais intermédios da sociedade civil (família, empresas, igreja, escolas, etc.) não preenchem mais os requisitos de sociabilidade e de socialização conducentes à estruturação do interconhecimento, da informalidade e da espontaneidade, por forma a que as relações interpessoais se tornem dialógicas, cooperativas e solidárias. Como resultado lógico, as relações sociais são conflitantes e desviantes. A integração e a ordem social revelam-se difíceis de realizar. O resultado mais evidente observa-se no crescendo progressivo da exclusão e da marginalidade social, no crime, na violência, na droga e na prostituição. O aumento exponencial de hospitais psiquiátricos, esquadras de polícia, tribunais, prisões, e casernas militares à escala universal é uma evidência empírica incontornável.
Com início já há vários séculos, os valores mais representativos do capitalismo sempre se modelaram no sentido de transformar progressivamente os seres humanos em objetos de produção e de consumo de mercadorias. Levado ao extremo, este paroxismo é avassalador nos nossos dias. São valores assentes na competição, na concorrência, na guerra e na destruição entre indivíduos e grupos sociais, todos eles idealizados para estes atingirem a máxima realização. Homem ou mulher feliz na sociedade capitalista é sinônimo de ser o melhor objeto de produção e de consumo de mercadorias. Estes valores essenciais do capitalismo foram alicerçados por uma cultura específica: ensinar, formar e educar em função de alcançar o máximo de felicidade através do poder, do dinheiro, da posse de propriedade e consumo de bens e serviços. É claro que nestas circunstâncias não há moral ou sistema de representações coletivas que resista. A desigualdade social, econômica, política e cultural é tão gritante na sociedade capitalista, que não há imaginário coletivo que se identifique com esses valores. Não existindo identidade coletiva, torna-se impossível construir e desenvolver linguagens, cuja emissão, transmissão e recepção seja traduzida pelos mesmos signos e significados. Por isso, a ética e a moral capitalista não encontram eco junto das grandes massas populacionais que constituem as sociedades capitalistas contemporâneas.
Como tábua de salvação, para todos aqueles que necessitam de um sistema de representações coletivas e não encontram uma resposta positiva nos valores e na cultura capitalista, emergem soluções pontuais e conjunturais de uma moral e uma ética assente em culturas e religiões tradicionais. Para resistirem ou sobreviverem num contexto adverso de uma padronização da simbologia comunicacional e informacional, na maioria dos casos, os indivíduos atomizados, alienados, oprimidos e explorados recorrem à religião, ao nacionalismo, à xenofobia e ao racismo. São soluções negativas que retomam o sentido da violência, da destruição, da guerra, da exploração e da opressão, sem capitalistas modernos ou pós-modernos, mas com a onipresença de deuses, ditadores, militares, polícias e sacerdotes.
Crise e limitações do anarquismo nas sociedades contemporâneas
Perante a natureza perversa do capitalismo na era da globalização, assim como do Estado-Nação, dos modelos de socialismo que se apresentaram como alternativas societárias, dos partidos e dos sindicatos, é perfeitamente lógico questionar porque é que o anarquismo não se afirma positivamente nesse contexto histórico. As respostas a estas perguntas são repetidamente as mesmas há várias décadas. O anarquismo não se exprime socialmente porque os anarquistas não adotam uma postura suficientemente revolucionária face ao capitalismo e ao Estado, ou porque estão atrelados a um intelectualismo estéril sem uma prática social conseqüente junto das massas oprimidas e exploradas. Outro tipo de resposta provém do fato de que o Estado e os capitalistas desenvolvem um processo de repressão e de manipulação ideológica, contribuindo desse modo para prender, silenciar e denegrir todo o tipo de intervenção que se reclame dos princípios e das práticas do anarquismo.
Até agora, este tem sido o exemplo mais típico de analisar a manifesta incapacidade de intervenção e de plasticidade social do anarquismo nas sociedades capitalistas contemporâneas. Portanto, como base num pressuposto metodológico polarizado à volta do bem e do mal, do interno e do externo, a causa da crise e das limitações do anarquismo no início do século XXI é sempre interpretado de uma forma maniqueísta e mecanicista: o bem opondo-se ao mal, o contra-revolucionário opondo-se ao revolucionário, são a base explicativa e vivencial dessa postura. As frustrações e a "ghetização" que muitos anarquistas vivem, ou a inexistência de uma revolução social identificada com os pressupostos do anarquismo são, na maioria dos casos, assumidos e interpretados como causa externas à vontade do "anarquismo verdadeiro". Nestas condições, se este anarquismo não progride é porque o Estado e o capitalismo continuam a dominar e a explorar, destruindo toda e qualquer veleidade de emancipação social. Se o "anarquismo verdadeiro" não prolifera junto das massas oprimidas e exploradas, é porque muitos daqueles que se dizem hoje anarquistas são reformistas ou contra-revolucionários. Segundo os ideólogos do "anarquismo verdadeiro", os "falsos anarquistas", na maioria dos casos, não leram, não conhecem, os grandes revolucionários dos séculos XIX e XX, nem tampouco tentam realizar na prática as experiências revolucionárias positivas da revolução de 1936-39 em Espanha.
Ao enveredar-se por este caminho, tudo é justificado, inclusive a própria crise que este tipo de anarquismo atravessa. Por outro lado, o dogmatismo e as formas de organização e de intervenção clássicas do anarquismo demonstram uma grande incapacidade de realizar uma crítica radical da sociedade capitalista e do Estado na atualidade, ao mesmo tempo que transformam a anarquia num simulacro histórico, apoiado num conjunto de mitos revolucionários e de heróis emblemáticos do passado.
Não se pode lutar contra algo que não se conhece profundamente. O capitalismo e o Estado não são realidades estáticas sem sentido histórico. Para se manterem como poder e como base de dominação e de exploração, o Estado e o capitalismo foram constrangidos a reestruturar-se face às reivindicações ou tentativas revolucionárias que entretanto foram dinamizadas. As respostas históricas do capitalismo e do Estado tem implicado uma série de transformações substanciais no seu seio. Devido a tudo isso, não podemos continuar a analisar o Estado e o capitalismo como se hoje fossem idênticos à sua historicidade específica nos finais do século XIX e primeiras décadas do século XX. O Estado e o capitalismo complexificaram-se e tornaram-se entidades cada vez mais abstratas. As suas estruturas e funções são cada vez mais mediatizados por artefatos tecnológicos, por linguagens e culturas padronizadas de tipo formal e abstrato, por modalidades de controlo e dominação cada vez mais profissionalizadas. Neste sentido, as formas de exploração e de opressão do capitalismo não são só polarizadas à volta da figura despótica do empresário ou do patrão, mas de uma extensa socialização dessas funções, incrementadas pela divisão social do trabalho e a generalização do trabalho assalariado. O Estado não é só personificado pelas suas prisões, tribunais, governo, polícia e militares. O Estado é sobretudo a reprodução de uma burocracia assalariada, a institucionalização e a formalização do controlo e da integração social através de formas e conteúdos cada vez mais sofisticados. O Estado, hoje, é também e sobretudo a interiorização de uma cultura padrão que é avassaladora em termos de atitudes e de comportamentos humanos, e independente de qualquer grupo ou classe social. Neste sentido, não se trata de extinguir o Estado na sua forma clássica, mas de erradicar da mente dos oprimidos, dos explorados e dos indivíduos alienados e atomizados, a idéia de que o Estado, face às suas manifestações perversas, é uma realidade histórica contraproducente e não é mais necessário para a manutenção da ordem social.
Por não se compreender estas mudanças no seio das sociedades capitalistas e no Estado, o anarquismo ortodoxo continua a organizar-se e a intervir como no passado, enaltecendo, para o efeito, sempre os fatos históricos, os autores e os heróis anarquistas mais proeminentes do passado. O anarquismo tem indubitavelmente um passado histórico que deve sempre ser enaltecido, por forma a dinamizar uma memória histórica que tem sido deturpada pelos apologistas da ordem social vigente. Todavia, essa memória histórica deve ser situada no seu espaço-tempo das transformações revolucionárias efetivamente realizadas, na sua historicidade e luta pela emancipação social, e não transposta mecanicamente para os dias de hoje, como forma de os seus defensores de hoje terem poder e razão, e usufruir de legitimidade para assenhorear-se de princípios e de práticas que nunca poderão ter dono.
As formas e os conteúdos da dogmatização e da ideologização do anarquismo decorrem não só das formas de organização e de intervenção que são adaptadas na sociedade, mas também nas formas e conteúdos que são desenvolvidos como interpretação, explicação, compreensão e vivência quotidiana da anarquia.
Vivendo sucessivas frustrações em relação a uma famigerada revolução social que deveria inevitavelmente ocorrer, tendo presente a perpetuação da essência negativa do Estado e do capitalismo, é normal que aqueles que se considerem anarquistas tentem compreender e, portanto, interpretar e explicar as causas que estão na origem de tal evolução. Ora, na generalidade dos casos, como em relação ao Estado e ao capitalismo, tudo já está explicado, interpretado, compreendido e vivido pelos autores e heróis anarquistas do passado, trata-se agora de seguir meticulosamente os seus passos e os seus ensinamentos inelutáveis. A anarquia, que não é nem pode ser interpretada, explicada, compreendida e vivida como um ismo, tal como acontece como o socialismo, o comunismo, o liberalismo, o fascismo, o judaísmo, o cristianismo, o islamismo, etc., torna-se num modelo padrão, num conjunto petrificado de conceitos e práticas, ou seja num dogma, com poderes, excomunhões, cultos e rituais idênticos a qualquer Estado, empresa ou igreja.
Porque não é nem poderá ser um dogma ou um modelo padrão de sociedade, a anarquia, na sua essência profunda, pode e deverá ser interpretada, compreendida, explicada e vivida conforme a liberdade, a criatividade, a responsabilidade e a soberania de qualquer indivíduo. Por essa razão, não existe um só ou um anarquismo que é melhor ou superior a outro anarquismo. A anarquia, na sua essência intrínseca, é antes de mais a hipótese de auto-governo, de auto-organização, da auto-consciencialização, da inexistência de deuses e de amos. A anarquia é um fim, não um meio, cujo sentido e orientação histórica não tem limites no seu aperfeiçoamento e na luta pela emancipação social. Esta unidade na sua relatividade histórica pressupõe a diversidade interpretativa, compreensiva, explicativa e vivencial, porque cada indivíduo ou grupo viveu, aprendeu e construiu a sua personalidade num contexto sócio-histórico, geográfico e cultural específico.
Por não terem ainda assimilado e interiorizado este dilema crucial, o anarquismo transformou-se muitas vezes numa negação da liberdade, da fraternidade e da cooperação entre os vários anarquismos: anarco-comunismo, anarco-sindicalismo, comunismo libertário, anarco-individualismo, anarco-pacifismo, anarco-naturismo, anarco-feminismo, municipalismo libertário, anarco-punks, etc. Em vez do diálogo e da construção de sínteses entre os vários anarquismos, por forma a potenciar a plasticidade social da anarquia, assiste-se repetidamente à calúnia, à provocação, ao conflito e ao fratricídio entre intervenções e organizações, que embora diferentes na sua especificidade deveriam livremente cooperar e confraternizar entre si, por forma a se fortalecerem mutuamente.
Hipóteses do anarquismo para o século XXI
Não obstante a crise que atravessa, na minha opinião, penso que o anarquismo na sua pluralidade intrínseca nunca teve tantas oportunidades históricas de se desenvolver como hoje. As razões desta afirmação podem ser extraídas com base no desenvolvimento da crítica radical ao Estado e ao sistema capitalista na sua globalidade; na reafirmação e atualização dos princípios e das práticas do anarquismo nas suas múltiplas versões; na reestruturação das formas de organização e de intervenção de modo a superar atitudes e comportamentos pautados por um militantismo alienante e relações interpessoais autoritárias; e, enfim, estruturar um conjunto de iniciativas consistentes, por forma a construir uma maior visibilidade social da anarquia no futuro próximo.
Diferentemente de todos os partidos e sindicatos, a função dos anarquismos não pode ser adstrita a uma crítica reformista ou normativa do Estado e da sociedade capitalista. Mais do que nunca é fundamental demonstrar a natureza exploradora, opressiva e destrutiva dessas duas realidades. Para isso exige-se que se faça uma crítica radical e sistemática de ambos, sem tréguas, sem qualquer espécie de concessão analítica. É sem dúvida uma crítica radical do trabalho assalariado, da propriedade privada, do dinheiro, das relações sociais pautadas pela autoridade hierárquica, da miséria, da pobreza, da alienação e exclusão social que atravessa a vida quotidiana de milhares de milhões de seres humanos, e da destruição do equilíbrio ecossistêmico da natureza. Pela sua extensão e profundidade, é premente que a sua abrangência seja universal, não esquecendo obviamente as suas traduções locais, regionais e nacionais. Em termos espaço-temporais, se tivermos em conta os efeitos perversos e estruturantes que emergem na atualidade através da formação de um Estado transnacional e de um capitalismo globalizado, é chegado o momento de elaborarmos uma crítica identificada com esta realidade histórica irreversível.
Essa crítica deve ser sempre acompanhada pela construção / difusão de uma nova moral, de uma nova ética, com valores assentes nos princípios e nas práticas da anarquia. Contra os valores predominantes do capital e do Estado, baseados na competição, na concorrência, na violência, na guerra e na destruição, devemos, em alternativa, propor os valores básicos da anarquia: liberdade, solidariedade, fraternidade, cooperação e amor. A erradicação da opressão e da exploração do homem pelo homem, implica necessariamente o fim de pobres e ricos, de oprimidos e opressores, de deuses e de escravos. A crítica da dominação e da exploração, por outro lado, não pode ser restringida ao homem como ser social, ela deve ser alargada ao homem como ser biológico. Neste âmbito, a crítica radical passa pelo fim da destruição da natureza, tendo presente os problemas da poluição atmosférica, da camada de ozônio, da destruição dos rios, mares, florestas, das espécies animais e vegetais, enfim da transformação desenfreada da matéria orgânica em matéria inorgânica. A existência da biodiversidade e do equilíbrio ecossistêmico impõe-se sobremaneira à sobrevivência histórica do homem como ser biológico, assim como de todas as espécies animais e vegetais.
As formas e os conteúdos de organização e intervenção dos vários anarquismos, para que sejam efetivamente diferentes dos partidos, dos sindicatos, das empresas e de qualquer tipo de igreja, têm que ser desenvolvidos de modo a que as relações interpessoais, a emissão, a transmissão e a percepção da informação que difunde os princípios e as práticas da anarquia sejam dialógicos, sejam estruturados pela democracia direta, pela liberdade e a soberania individual e coletiva de todos os indivíduos e grupos que integram esse processo. Princípios e práticas devem identificar-se e conjugar-se de forma harmoniosa, sendo simultaneamente meios e fins de uma ética, de uma moral, de valores que se afirmam positivamente e dão credilibilidade e plasticidade social à anarquia. Para este efeito há que assumir a relatividade dos anarquismos como meio de estruturação da anarquia, sabendo à partida que esta é e será sempre um projeto histórico inacabado. Por isso temos que ter sempre presente que reforma e revolução fazem parte de um processo histórico indissociável, que princípios e práticas não escapam às contingências dos fenômenos sociais, políticos, culturais e econômicos decorrentes do pensar e agir em termos absolutos e relativos.
Por outro lado, para que os conteúdos e as formas de organização dos vários anarquismos deixem de ser perpassadas pelo militantismo alienante é fundamental acabar com certas práticas e idéias que pululam em certos meios anarquistas. Antes de mais é preciso descortinar que a matriz filosófica, social e biológica da anarquia é o indivíduo soberano e livre, e não qualquer classe social que sofre as contingências negativas da opressão e exploração capitalista e estatal. Em termos potenciais é lógico que todos os oprimidos e explorados possam querer efetivamente o fim do Estado e do capital. Mas esta probabilidade é extraída de um tipo de materialismo histórico e dialético maniqueísta que considera o ser humano sempre como objeto e não como sujeito da sua própria história. Nestes termos, não é anarquista quem quer, nem se é anarquista porque simplesmente se vive uma situação de exploração e de opressão, mas quem intrinsecamente, no sentido profundo da sua mente e da sua ação, como ser social e biológico, aspira à liberdade, ao amor, à solidariedade e à fraternidade, sem necessitar para o efeito de qualquer deus ou de qualquer amo. Por tudo isso, quando qualquer anarquismo pretende defender ou divulgar as idéias e as práticas da anarquia deve fazê-lo de uma forma frontal e direta, sem ambigüidades e subterfúgios, sem veleidades de catequização ou de apostolado religioso junto dos mendigos, dos pobrezinhos, dos excluídos sociais, dos explorados e dos oprimidos. As pessoas, seja qual for a sua situação, nunca poderão ser consideradas como coitadinhas, infelizes, ou desprotegidas, implicando que precisem de ser ajudadas por anarquistas iluminados e bem intencionados. Assim como se deve extirpar qualquer espécie de alienação e de autoritarismo nas relações entre os vários anarquismos, estes, nas suas relações com qualquer indivíduo ou grupo social, devem relacionar-se através da identidade e da reciprocidade entre pessoas que aspiram tornar-se livres, responsáveis, criativas e soberanas.
Em termos concretos, hoje e amanhã, é possível construir e desenvolver projeto de natureza coletiva à escala local, regional, nacional, continental e mundial. Para se subtrair a algumas das vicissitudes do trabalho assalariado e da autoridade hierárquica das empresas capitalistas e do Estado, é possível criar cooperativas ou tipos de associação autogestionária relacionados com a produção, distribuição e consumo de determinados bens e serviços. No mesmo sentido, é possível criar livrarias, escolas, bibliotecas, teatros, rádios, jornais, televisão, etc.
Por outro lado, é possível transformar as novas tecnologias como um meio de socialização da comunicação e da informação dos princípios e das práticas da anarquia. A construção de sites e de redes de crítica do capitalismo e do Estado, de intervenção e difusão dos anarquismos à escala local, regional, nacional e mundial é imperiosa.
Finalmente, como é crucial repor e difundir a memória histórica do passado e como é imprescindível enveredarmos por um processo sistemático de auto-consciencialização, de auto-educação e de auto-formação, é necessário realizar debates, conferências, colóquios, congressos e acampamentos libertários, a nível local, regional, nacional e mundial.
Nenhum comentário:
Postar um comentário